“A Feira das Vaidades”, William Makepeace Thackeray
“O mundo é um espelho e mostra a cada um o reflexo da sua própria face. Olhas para ele com sobrolho carregado e ele olha-te de volta azedamente; ris-te para ele e ele será um companheiro gentil e alegre; então, deixe-se que todos os jovens façam as suas escolhas.”
Estou há muitos muitos anos para ler Vanity Fair. Muitos mesmo. Desde que era muito miúda e comecei a ler todos os clássicos. Lembro-me de que na altura houve uma época em que andava louca à procura de uma tradução desta obra. Aparentemente há dez anos, quando eu tinha 13, não havia nenhuma. Sinceramente, acho que ainda não há. Ou se há, eu não conheço. Entretanto, fui-a esquecendo porque foram surgindo sempre novas obras que queria ler e, mesmo quando comecei a ler as versões originais, colocavam-se sempre outras prioridades literárias. No início deste ano, fiz a minha lista com todos os clássicos que extraordinariamente me tinha "esquecido" de ler e lembrei-me de Vanity Fair. Estou tão feliz de finalmente o riscar da lista!
Vanity Fair teve o subtítulo “Pen and Pencil Sketches of English Society” aquando da primeira publicação (1847) e “A Novel Without a Hero” aquando da segunda (1848). Digo-vos isto porque acho que vale mais do que qualquer sumário que eu possa fazer. A história surge como uma peça. Não de teatro, mas como aquelas de fantoches, ainda que em tamanho real. Talvez uma espécie de holograma? Um microcosmo? Bem, o que seja. A narrativa acompanha, claro, a sociedade inglesa, como já ficou claro, mas foca-se em duas mulheres, Amelia Sedley e Rebecca Sharp, muito diferentes entre si e de origens distintas. Amelia vem de uma família de posses e Rebecca é filha de um pintor e de uma dançarina e cantora francesa; Amelia é gentil e elegante e Rebecca é ambiciosa e implacável. A história acompanha a vida de ambas, os seus desgostos e amores e alegrias e desamores. A obra acaba por ser cíclica por Amelia começar bem, ficar mal devido à falência do pai e à morte do marido e voltar, por fim, a ser feliz e a estar bem; e por Rebecca que começa com tão poucas esperanças conseguir ascender, através dos seus esquemas, até quase ao topo da pirâmide social, e voltar a cair até ao zero. Como a roda medieval, sabem? Como pano de fundo temos a sociedade instruída e polida da Inglaterra vitoriana com todos os seus excessos, hipocrisias e ingenuidades.
Vanity Fair é uma daquelas obras magníficas a que os romancistas ingleses dos séculos XVIII e XIX tão bem nos habituaram e que espelham uma sociedade em decadência da qual podemos ver um reflexo nas nossas próprias sociedades contemporâneas.
Há pelo menos quatro aspetos que quero destacar. O primeiro tem a ver com as convenções literárias. Vanity Fair subverte e joga com convenções literárias que o leitor da época (e alguns de nós) conhecem muito bem e entre a quais destaco a tradição dos heróis. Aliás, o segundo subtítulo denuncia isso mesmo. Imaginem, se Amelia é o retrato perfeito de uma heroína sentimental, tantas vezes ironizada pelo narrador por chorar a literalmente todo o instante, Rebecca é claramente a anti-heroína, é o oposto do que deveria ser a mulher da época. Rebecca assemelha-se àquelas heroínas que se vieram a destacar nos romances franceses e russos como Anna Karenina, Emma Bovary ou Marguerite Gautier. Mas com uma diferença, o narrador deixa ver que o fundo de Rebecca não é bom. Simultaneamente o narrador vai ironizando a “pobre Becky” e, simultaneamente, mostrando que os motivos que a levam a agir assim estão ligados à forma como a sociedade nunca lhe deu uma oportunidade só por ela não ser abastada, só por ser filha de pessoas sem nome e com profissões duvidosas.
Em segundo lugar, destaco obviamente o plot romântico. Lembram-se de Mr Darcy de Pride and Prejudice de Austen? Exato. Aqui temos William Dobbin que é, como dizem os ingleses “the second best thing”. Eu nem costumo apreciar por aí além este tipo de heróis, acho-os sempre meio toscos e irritantes (apesar de os achar também maravilhosos, atenção!), mas gostei mesmo deste personagem. Sobretudo da forma como evoluiu no final. O amor dele pela Amelia é só lindo!
Em terceiro, o narrador. Para mim, uma das razões para o sucesso da obra. Adorei a voz narrativa. É dos narradores de que mais gostei até hoje. É muito próximo de nós, sabem? Não é confiável, nunca sabemos quem é, às vezes parece só o autor de uma história, depois aparece como um figurante que observou determinada cena, mas sabem o que mais gostei? Parece que está sempre connosco. Nunca se deixa esquecer. É como irmos passear acompanhados. Eu senti-me sempre acompanhada no processo de leitura, não era só eu, a leitora. Era eu, a leitora, e o narrador que me contava a história. Gostei mesmo muito deste aspeto.
Por último, a crítica social. Maravilhosa! Não vou elaborar porque a receita é antiga. Todo o romance inglês a mostra, apenas a maneira de a expor varia. Portanto, não vale a pena dizer muito. Apenas que eu gostei desta maneira.
Ah! Vanitas Vanitatum! Quem entre nós é feliz neste mundo? Quem entre nós alcança o que deseja? Ou, tendo-o alcançado, fica satisfeito? Vamos crianças, deixai que se feche a caixa e se arrume os fantoches, porque a nossa peça chegou ao fim.
Não vou mentir. A obra é extensa. A minha edição é de bolso, ou seja tem aquelas letrinhas extraordinariamente pequeninas e, mesmo assim, tem quase 700 páginas. Mas isso é o que tem cada volume de Guerra & Paz ou de Os Miseráveis e todos os lemos! Vanity Fair vale muito pena e não consigo recomendar-vos vezes o suficiente que a leiam. Foi uma das obras que mais gostei de ler este ano, pelo menos até agora. De verdade. E lê-se muito bem, cativa-nos. O narrador, como vos disse, só ajuda. Sei que vou dizer uma coisa estranha e tenho consciência de que, se calhar, não vão entender o que quero dizer, mas Vanity Fair é um livro muito “confortável de se ler”. Compreendem o que quero dizer? Já o leram? O que acharam? Têm curiosidade suficiente para o ler? Convenci-vos?
Idioma de Leitura: Inglês
5/5