“A Jangada de Pedra”, José Saramago
O mundo está cheio de coincidências, e se uma certa coisa não coincide com outra que lhe esteja próxima, não neguemos por isso as coincidências, só quer dizer que a coisa que coincide não está à vista.
Como certamente reparam, eu não costumo por norma ler muitas obras portuguesas. Não é por nada em especial, como é lógico. Só não calha e não são tão apelativas para mim. Há poucas que se enquadrem no género de livros que eu gosto. Se for honesta, Saramago também não se enquadra, mas por alguma razão, gosto sempre bastante das obras dele e ultimamente, cada vez que penso “a seguir vou ler alguma coisa de Portugal”, é a minha primeira escolha. Se se lembram, na primavera falei-vos de As Intermitências da Morte. Nessa altura, o que queria mesmo ler era A Jangada de Pedra, mas acabei com as Intermitências. Sei que a vontade de ler esta obra veio de uma aula de cinema em que alguém mencionou a adaptação fílmica (do realizador George Sluizer, 2002) e falou tão bem dela que, sendo eu a pessoa fácil de cativar que sou, quis logo ler. O filme nem me interessou, para ser sincera.
A Jangada de Pedra (1986) narra a separação da península ibérica da europa. Literalmente. Quero eu dizer, em termos geográficos mesmo. Simultaneamente, a obra segue 5 personagens – Joana Carda, José Anaiço, Maria Guavaira, Joaquim Sassa e Pedro Orce – e um cão – Constante - que viajam pela península agora à deriva e que, por diferentes razões, se sentem culpados pela separação física da península ibérica. Por exemplo, Joana Carda considera que foi o risco que fez com uma vara no chão que separou a península da europa. O propósito da viagem não é claro. Mas existe alguma viagem, pelo menos metafórica, com propósito claro e declarado?
A obra é, como é lógico, uma alegoria. Remete para a situação ibérica face à unificação da europa e para aquela sensação tão recorrente de que “estamos aqui um bocadinho afastados”, de que “somos um caso à parte”, como regular e vulgarmente costumo ouvir.
Destaco alguns aspetos de que gostei particularmente. A menção à forma como a europa tenta ineficazmente resolver o problema da península, relegando para outros e ignorando a situação; o papel dos EUA, aqui retratados, claro, como sempre a imiscuírem-se nos assuntos do mundo e a tentarem que as consequências dessa ação recaiam em todo o lado menos ali; e o aproveitamento político em situações de caos. Refiro ainda aspetos mais filosóficos como o impacto da ação individual no coletivo, as coincidências que fazem mover o mundo, a inação e imobilidade do homem face à vontade da natureza e o vazio e o cariz prático dos relacionamentos humanos quando já nada conta e as fronteiras físicas e, por conseguintes, morais e éticas, vão sucumbindo.
No geral, gostei bastante. A crítica velada, não só à situação da península ibérica e à forma como esta era e é vista pelos restantes países da europa (e do mundo), como também à própria sociedade, aos seus costumes, e obviamente, à natureza e à ação do indivíduo, é para mim o melhor da obra.
Também acho a alegoria bastante original. A península ibérica a separar-se fisicamente da europa. É bastante simples, na verdade. Tão simples e direta que realmente não é qualquer pessoa que se lembraria de a utilizar. Porque honestamente, foi só tornar literal o que é "metafórico". O que só prova que às vezes não é preciso muito para criar coisas boas e com sucesso. Não é necessário ser-se demasiado pretensioso ou pensar muito ou tentar grandes golpes de genialidade. Às vezes as coisas mais simples resultam muito melhor e, neste caso, acho que é precisamente isso.
No entanto, A Jangada de Pedra não se tornou, nem de perto nem de longe, a minha obra preferida de Saramago. Ainda tem umas quantas à frente. Mas gostei mesmo. Sei que há imensas pessoas que não gostam das obras de Saramago; ou porque não gostam pessoalmente do autor, ou porque depreciam o seu acervo no geral, ou porque não gostam do género, ou simples e infelizmente por puro preconceito. Felizmente, isso não me ocorre. E por isso, recomendo mesmo a leitura, especialmente se forem como eu e, antes de considerarem o todo por igual, apreciam as coisas pelo que elas são por si só.
Idioma de Leitura: Português
4/5