“A Leste do Paraíso”, John Steinbeck
Apenas temos uma história. Todos os romances, toda a poesia, tudo é construído sob o conflito interminável entre bem e mal. E ocorre-me que o mal deve constantemente repetir-se, ao passo que o bem, que a virtude, é imortal. O vício tem sempre uma cara nova e fresca, enquanto que a virtude é venerável como nada mais no mundo o é.
Há uns meses escrevi-vos sobre as minhas impressões sobre As Vinhas da Ira de John Steinbeck. Na mesma altura comprei A Leste do Paraíso. Antes disso, como vos referi naquela altura, apenas tinha lido, deste autor, O Inverno do Nosso Descontentamento, uma obra da qual gostei especialmente. Em relação a As Vinhas da Ira não senti o mesmo entusiasmo, embora tivesse igualmente gostado. Como resultado destas duas experiência comecei a ler A Leste do Paraíso desprovida de especiais espectativas
Situada historicamente na América da Grande Depressão, A Leste do Paraíso segue duas gerações de duas famílias — os Trask e os Hamilton. O foco é essencialmente a família Trask que conhecemos inicialmente através dos dois irmãos Charles e Adam e, mais tarde, da relação entre os filhos de Adam, Cal e Aron. Ao mesmo tempo, a narrativa abrange também a trágica e impressionante história de Cath, mãe de Cal e Aron. Os Hamilton são sobretudo representados pela figura de Samuel que, ao longo da narrativa, assume o papel de amigo e conselheiro de Adam. É importante especificar que A Leste do Paraíso pretende englobar a história bíblica de Adão e Eva e, sobretudo, de Abel e Caim, reescritas nestas duas gerações de famílias. Daí que a narrativa dependa muito da relação entre Charles e Adam e entre Cal e Aron.
São os detalhes que ligam a história de Steinbeck à história bíblica seguida. Não é que não possamos ler A Leste do Paraíso não a conhecendo — podemos —, mas perdemos algo. Existem tantas ligações interessantes. Por exemplo, os diferendos entre as duas gerações de irmãos Trask. Tanto Charles e Adam como depois Cal e Aron tem relações conflituosas; nos dois casos, um tenta ferir o outro, à semelhança do crime que marca a história de Abel e Cain; nos dois casos essa situação resulta do sentimento de rejeição paterna que um dos irmãos sente ao ver o pai preferir um ao outro; existe em A Leste do Paraíso a repetição do motivo bíblico quando o principal ato de ofensa de um irmão em relação ao outro resulta da preferência do pai pelo presente que um lhe oferece em relação aquele que lhe é oferecido pelo outro; além disso um dos irmãos surge sempre retratado como mais amável e socialmente preferido em relação ao outro sempre retratado como mais marginal e individualista. Ademais, é também pertinente notar a relação de Charles e Adam com Cath. Ora Cath teve uma breve ligação com Charles já depois de casada com Adam e, considerando que Abel não teve filhos, não é errado assumir que os gémeos que Adam assume como seus filhos são, em verdade, filhos de Charles, um detalhe muito interessante. Tal como a preocupação em corresponder as iniciais dos nomes dos irmãos aos personagens bíblicos correspondentes.
Muito pertinente é também a figura de Cath. Conhecemo-la ainda pequena e desde logo não podemos deixar de ficar surpreendidos com a sua inerente maldade. À medida que os seus crimes, as suas ações e a sua falta de consciência e responsabilidade em relação às mesmas nos vão sendo ilustradas, não deixamos de nos espantar e, simultaneamente, fascinar. Porque algo que não deixou de me impressionar foi o quão fascinante é a maldade de Cath e a sua amoralidade. Não me parece que haja um crime que Cath não tenha cometido. O que a diferencia de Charles e de Cal é não parecer existir uma justificação clara para o comportamento ou para a maldade de Cath. E o que acho interessante é que, realmente, não tem de haver.
Por fim e em relação a este aspeto, gostaria de destacar uma passagem da obra que me impressionou bastante. Samuel questiona acerca da importância e do impacto precisamente da história de Cain e Abel e chega à conclusão de que, sinteticamente, esta advém do facto de esta história melhor exemplificar o tormento da existência e origem da ação humana — a rejeição por um lado e a culpa por outro. É uma passagem relativamente pequena, mas que vale pelas mais de 600 páginas da obra. É lindíssima e não podemos deixar de entender como realmente é certeira. Simultaneamente, desvenda-nos a história da obra e a importância e a justificação para a presença da referência bíblica.
Quando lemos várias obras de um mesmo autor, acaba por ser inevitável, ainda que involuntariamente, não as compararmos. A Leste do Paraíso tornou-se a minha obra preferida de Steinbeck. É muito cativante sob diferentes pontos de vista e, ainda que semelhante em alguns aspetos a pelos menos as outras duas obras que li do autor, acaba por ser diferente de ambas num aspeto muito específico. Se naquelas obras é evidente uma crítica social e política que talvez surja muitas vezes como enunciada enquanto principal finalidade das obras, em A Leste do Paraíso, não notei tanto essa intenção. É evidente que essa crítica existe, mas penso que esta obra em especial depende mais do paralelo com as histórias bíblicas e se torna muito interessante pela crítica e, ao mesmo tempo, apologia à natureza humana, à moralidade, aos costumes, etc. A Leste do Paraíso, a meu ver, preocupa-se muito mais com o individuo, com a sua incapacidade em contornar a sua natureza, com a sua consciência de que o deve fazer e com a sua frustração ao ver-se incapacitado para o fazer, do que propriamente com a sociedade. Não esquecendo, contudo, o impacto individual no coletivo que está sempre subjacente.
Esta preocupação em retratar a natureza humana e o peso dela no individuo, bem como o modo como esta é modelada pela moral, pela ética e pelos costumes e tradições que fomos construindo enquanto civilizações, assim como a explicação desta realidade através do recurso às histórias bíblicas, foram definitivamente o ponto mais forte da obra para mim e o aspeto que mais me cativou. Claro que as histórias dos protagonistas acabam por contribuir também a um nível mais superficial, mas creio que a maior valência da obra é genuinamente o seu cruo e certeiro retrato da nossa condição. Não podia recomendar mais esta leitura!
Já leram A Leste do Paraíso? Qual a vossa impressão desta obra?