“A Morgadinha dos Canaviais”, Júlio Dinis
Ia apostar que vai ali uma inteligência (…) algum desses grandes espíritos, que vivem e morrem ignorados, porque os não aquece o sol do favor público, nem os bafeja a aura da moda caprichosa.
A Morgadinha dos Canaviais é um romance do século XIX da autoria de Júlio Dinis, primeiramente publicado em 1868.
A ação da obra decorre na zona de Vila Nova de Gaia, na aldeia de Grijó, concretamente entre as quintas de Alvapenha e dos Canaviais. A história inicia quando Henrique de Souselas é aconselhado pelo seu médico a mudar-se durante algum tempo para o campo para se curar dos estados de espírito que o fazem pensar estar doente. Assim, Henrique parte para passar uma temporada com a sua tia Doroteia na quinta da Alvapenha. Aí estabelece contacto com a família do Mosteiro, a família de Madalena, conhecida na aldeia como “morgadinha dos canaviais” em virtude de ter herdado da sua madrinha a Quinta dos Canaviais. Todavia, ao invés de viver nessa propriedade, Madalena vive no Mosteiro com a sua tia Victória e os filhos desta, entre os quais a sua prima e amiga Cristina. A narrativa acompanha as melhoras da saúde de Henrique, a sua nova vida no campo e as mudanças que esta opera nele, mas igualmente a vida da aldeia, seguindo as suas intrigas sociais, políticas e religiosas.
De facto, para mim o que mais sobressaiu nesta obra foi realmente o modo realista e irónico como o autor aborda a política e a religião.
Para além disso, destaco o modo como a obra ilustra o desenvolvimento moral do protagonista, desde os seus comportamentos afetados e visões romanescas alimentados pela sua indolente vida na capital, até a um estado mais simples e natural incentivado pela sua nova vida rústica e pelas pessoas humildes, mas igualmente complexas com que passa a conviver.
Nesse âmbito, sublinho esta mudança na personalidade e comportamentos de Henrique que acompanhamos ao longo da leitura e que, fica claro, surge em virtude da sua mudança da capital para o campo. Demais, é igualmente enfatizado o modo como o Conselheiro, pai de Madalena e representante nacional daquela aldeia, mudou ao longo da sua vida e em função da sua ida para a capital e do seu ingresso na vida política. Aliás, subjacente a toda a obra está a questão da corrupção moral exercida pela vida da cidade e pelos interesses políticos.
Noto também a importância e destaque dado ao fanatismo religioso e os efeitos que a religião tinha na vida coletiva e na política local. Aí destaco a abordagem da obra à lei que entrava então em vigor e que proibia o enterro das pessoas na igreja e a consequente ação de sepultar em cemitério.
Como referi no início, a ação decorre num sítio real e que o autor muito bem conhecia e terá devido alguma inspiração a uma família à qual o autor ainda era ligado. Tal justifica claramente o retrato tão perfeito e simples da vida rústica e das suas pessoas. Ninguém é esquecido nas personagens – encontramos o professor primário, o herbanário, as beatas, a hipocrisia e domínio clerical, os políticos, os dilemas entre senhoras e criadas, os problemas de alcoolismo dentro das famílias, o contraste que os que vêm da grande cidade encontram ali, as tentativas de desenvolvimento urbano e social que tantas mudanças provocam e resistência encontram nestes meios pequenos, etc.
Na condição de alguém que cresceu numa aldeia pequenina, não posso deixar de notar que do século XIX para a contemporaneidade, nada mudou nas nossas aldeias portuguesas. Os meios são diferentes, as condições melhores e a evolução beneficiou a vida individual e coletiva, mas tudo o resto, o que realmente importa, as pessoas, não mudou assim tanto.
A Morgadinha dos Canaviais é uma das obras mais populares portuguesas e percebe-se bem porquê quando a lemos. Ainda encontramos ali muito do nosso país atual e, nesse âmbito, parece-me uma leitura absolutamente fundamental para além de deveras interessante e cativante.