“A Sonata de Kreutzer”, Lev Tolstói
Eu queria correr atrás dele, mas lembrei-me de que é ridículo correr atrás do amante da nossa esposa de meias; e eu não queria ser ridículo, queria ser terrível.
A Sonata de Kreutzer foi publicada no século XIX, em 1889, sendo considerada uma das mais célebres novelas de Tolstói. O seu título deriva da sonata de Beethoven de igual nome. A obra foi censurada na Rússia aquando da sua publicação, embora isso não tenha impedido que versões suas circulassem.
A narrativa consiste numa conversa entre passageiros que se encontram numa viagem de comboio e foca temas como o amor, o matrimónio, o divórcio, os ciúmes e a vida conjugal. A história começa quando Pozdnyshev, o interlocutor do narrador, ouve uma conversa entre outros passageiros sobre o amor e o casamento, iniciando-se nesta fase da obra uma reflexão concernente a esses temas. Posteriormente, a sós com o narrador, Pozdnyshev relata a sua própria história pessoal, começando por confessar que fora acusado do homicídio da esposa. O personagem conta então como conheceu, se apaixonou e casou com a esposa, descreve a sua vida conjugal e revela as suas suspeitas quanto ao adultério dela com um violinista, relatando a dimensão dos seus ciúmes e o crime que provocaram.
Esta obra é ainda recordada como uma apologia ao celibato e pela sua descrição vivida do sentimento de ciúmes. Com efeito, na sequência desta obra, Tolstói escreveria num epílogo que o amor carnal não era algo nobre ou superior e que, qualquer que fosse o objetivo que se pretendesse atingir, não se alcançaria através de uma comunhão com o objeto amado que, pelo contrário, atrasaria e colocaria em causa as finalidades mais nobres e importante do indivíduo e da humanidade.
É clara a ideia que desta obra resulta de que os grandes males advêm dos excessos nos comportamentos dos indivíduos, dos seus instintos mais primários e das relações entres homens e mulheres, sobretudo amorosas. Que, resolvendo-se e evitando-se tais, se almejaria mais facilmente a um foco em outros aspetos mais nobres e, consequentemente, a humanidade progrediria no sentido de uma existência mais plena e feliz.
Muitas vezes A Sonata de Kreutzer foi e é ainda julgada por se entender que postula ideias conservadoras ou inadequadas à própria natureza humana. Parece inegável que o faz, como parece certo que o autor acreditava genuinamente em tais ideias e no seu valor. Mas, não parece tão certo assim que a receção da obra seja por esta abordagem definida. Podemos concordar ou não concordar, mas não me parece, pessoalmente, que isso seja importante ou que diga algo sobre a obra, o leitor ou o autor. E menos me parece que deva servir como motivo para ler ou não ler, julgar ou não julgar, obra e autor.
O que me parece importante e o que fica desta obra para mim é a reflexão que inspirou e perspetiva que ofereceu. Não é muito vulgar encontrarmos uma obra com uma visão destas acerca do amor e da instituição do casamento, sobretudo assente neste tipo de premissas. No geral, não me lembro de muitas narrativas que, de um modo ou de outro, não tratem o amor romântico como algo a atingir; e, por outro lado, não me lembro de um autor tão preocupado em defender e expor, com a sua obra e a sua vida, um modo de vida para a humanidade que permitisse a sua felicidade mais plena.
A Sonata de Kreutzer está traduzida em português, nomeadamente pela Relógio d’Água, que foi a edição que escolhi. Para quem nunca leu Tolstói, é certamente um bom começo e, para quem já conhece, penso que só pode melhorar a perceção da dimensão da generalidade da obra de Tolstói e, em última instância, do próprio autor e da sua vida.