“Anna Christie”, Eugene O’Neill”
Somos todos pobres criaturas e as coisas acontecem, acabamos por errar, apenas isso.
A semana passada falei-vos de uma peça e esta semana escrevo-vos sobre outra peça. Desta vez (ainda) não é Shakespeare outra vez, mas sim o autor americano Eugene O’Neill e a sua peça Anna Christie (1921).
Anna Christie é uma peça em quatro atos que segue a protagonista Anna Christie, uma prostituta, e a sua relação com dois homens – Chris, o seu pai, e Matt, um pretendente. A peça começa quando Chris recebe uma carta da filha, não vê a filha desde a infância dela quando a deixou aos cuidados da sua família para se aventurar pelo mar, a agendar um encontro. Anna já não é nada do que Chris pensou que ela era ou seria. Antes do fim do primeiro acto Anna concorda em embarcar com o pai e, no segundo acto, em consequência de um naufrágio, conhece Matt e os dois apaixonam-se. Assim, o terceiro acto segue a disputa entre os dois homens – Chris e Matt – por Anna e pela sua atenção, enquanto que o quarto acto define o “vencedor”.
No fundo a peça é sobre os tormentos desta personagem, Anna, que, abandonada pelos pais ao cuidado uma família negligente que não a amava, encontra primeiramente a exploração na profissão de enfermeira e em seguida na prostituição, até vir novamente a ser disputada por dois homens que diziam amá-la e a encarar o preconceito face às suas atividades.
Creio que o principal tema da obra é óbvio, as relações de poder e de género. Existe um discurso no inicio da peça em que Anna discorre basicamente sobre como toda a sua vida foi sendo explorada de diversos modos por diversos homens; quer pelos da sua família que a obrigaram a trabalhar, quer depois pelos seus pacientes que requeriam uma anormal atenção dela; até culminar na prostituição. Neste discurso a sua atitude e opinião face aos homens é bastante negativa e enfática.
O que tem significado para mim é que, não obstante essa postura, Anna não consegue evitar criar laços com o pai e esperar que ele seja diferente. Em seguida faz o mesmo com Matt. E ainda mais interessante é notar como, de certo modo, eles mesmos não só não a respeitam enquanto entidade isolada e independente deles, como, na verdade, também a exploram, ainda que de modo diferente. A própria competição entre eles aliena completamente Anna ou a sua vontade. É uma competição entre um homem que quer casar com ela e um que não a quer deixar sair da sua vida e do seu espaço de manobra. Notar o modo como eles reagem à revelação da profissão de Anna é ainda mais interessante neste contexto.
Gostava de destacar também a importância da família e dos afetos no desenvolvimento de um ser, a nível humano mas também social. Isto porque não conseguimos deixar de nos questionar, tivesse Anna crescido com os pais e seria mais feliz? Mas a questão não é realmente essa, porque se ela crescesse com pais que não a tratassem bem poderia resultar no mesmo ou pior. A questão importante é, tivesse ela crescido com amor, ou pelo menos respeito, o seu destino seria outro? Isto faz-nos refletir sobre a importância do meio no qual crescemos e sobre o modo como somos educados. Independentemente de qualquer predisposição da nossa natureza, personalidade, etc.
Além disso, destaco o final e a visão otimista que esta peça, que parece sempre pesada de uma atmosfera negativa, consegue.
No geral, penso que é uma peça bastante interessante. Mais pelo que representa e simboliza do que propriamente por si. Pessoalmente, gostei mais do significado da peça e da reflexão que ela suscitou do que propriamente de a ler.
Já leram Anna Christie? Quais as vossas impressões?