“Cândido ou o Otimismo”, Voltaire
Otimismo? O que é isso? – perguntou Cacambo.
É a mania de defender que tudo está bem quando tudo está mal. – respondeu Cândido.
Este livro representa uma rara exceção na minha lista. Não fui eu que o escolhi, foi-me recomendado por colegas. Claro que eu, uma pessoa tão esquisita, não leria um livro só por recomendação. Confesso que gosto bastante de Voltaire. Ainda assim, fico sempre feliz quando leio algo porque alguém me diz que devia ler. Demonstra que me conhecem bem. E, se eu gosto da obra, fico ainda mais feliz porque descobri um novo livro.
Pois bem, Cândido ou o Otimismo (1759) é uma obra difícil de resumir ou explicar porque exige contexto e porque tem valor filosófico. Voltaire escreveu-a essencialmente como uma sátira. A obra segue o jovem Cândido, assim chamado em função das suas caraterísticas pessoais, desde que é expulso do castelo onde vivia envolto numa paz e beleza edénica e sujeito aos ensinamentos do professor Pangloss. Ao longo da obra são narrados diversos acontecimentos que advogam contra todas as ideologias em que Cândido fora educado acreditar e lhe mostram a verdadeira face do mundo e das pessoas que nele vivem. A obra finda com Cândido já mais adulto e com uma perceção da realidade muito diferente.
Se costumam seguir o blog sabem (porque eu menciono sempre que é o caso) que, apesar de adorar obras filosóficas, não falo alargadamente sobre elas nesse âmbito. Por duas razões. A principal é que eu não me formei em filosofia, apenas tive algumas cadeiras e seminários e, a abordagem que faço e o que conheço da área é em função da teoria e da história da literatura. Como eu não gosto de falar do que não estou qualificada para não cair no erro de dizer um disparate ou abordar o assunto com uma leveza desadequada, recuso-me a fazê-lo. Assim, o que eu escrevo agora, não tem valor que não o de uma opinião geral e genérica.
No século XVIII, 1710, o alemão Gottfried Leibniz publicou Théodicée, uma obra que pretendia responder ao francês Pierre Bayle que, em Historical and Critical Dictionary, de 1697, defendera que não existe uma resposta à famosa questão, porque é que Deus, sendo perfeito e sendo o autor de tudo, criou o mal. Ora Leibniz defendeu então que Deus, sendo perfeito como é, criou o “melhor mundo possível”, um mundo onde há um balanço entre bem e mal. Daí resulta que, qualquer coisa que nos aconteça é o menor dos males porque vivemos no melhor mundo possível.
É esta ideologia que Voltaire satiriza em Cândido ou o Otimismo onde o protagonista, educado por Pangloss, um acérrimo defensor da noção de Leibniz, é constantemente colocado em situações terríveis e conhece pessoas a quem acontecem as piores coisas que possam imaginar. Teimoso e persistente, até ao final Cândido pensa que tudo acontece por uma razão e que vive no melhor mundo possível. Esta inflexidade, aliada aos comentários do narrador, para além de entreterem o leitor e o divertirem, permitem - pelo menos no meu caso - a criação de um laço terno com o ingénuo Cândido. Para além de nos predispor a imensas reflexões. Os nossos problemas são assim tão maus? Isto é certo ou errado? O mundo é um sítio bom ou mal? No fim de contas, alguma destas coisas realmente interessa? Enfim.
Apesar de ter um teor, cariz e motivação filosóficos, a obra é bastante literária. Assemelha-se a um romance em tudo, desde narrativa a estilo e vocabulário. A história de Cândido faz lembrar os romances picarescos ou os Bildungsromans. A própria história é incrivelmente romanceada. Digo isto porque estes aspetos facilitam muito a leitura e até permitem que a leiamos desconhecendo o seu contexto e/ou sem considerar as suas implicações. Já para não falar do tom irónico e satírico que aproxima sempre o leitor do autor e que faz com que a leitura, para além de fácil, seja muito agradável.
Destaco também a crítica implícita e explícita. Não só em relação à corrente filosófica mencionada, mas em relação a diversos outros aspetos, entre os quais menciono a título de exemplo o regime monárquico europeu à data e as guerras religiosas, a condição da literatura e da arte, bem como dos seus autores, os críticos da arte pretensamente eruditos que não apreciam nada do que leem e que não leem nada que não tenha estatuto adequado e, claro, a alta nobreza.
Não posso também deixar de referir uma passagem que acho que resume muito bem a obra e a crítica principal à filosofia, não só de Leibniz, mas no geral e que reflete aquilo que eu ainda consigo observar nesse meio. A certo ponto o autor refere que a condição do filósofo implicava que ele persistisse nas suas ideias por muito que até percebesse que elas estavam erradas, ou que outra abordagem serviria melhor os seus propósitos. Isto, para além de explícito, é atual e dispensa comentários. A humildade é sempre importante. Em todas as áreas. E não existe uma área melhor do que a outra. Não sejamos pretensiosos.
Como adivinham, eu gostei imenso da obra. É ótima, leu-se muito bem e, apesar da crítica, das referências múltiplas a um contexto histórico, geográfico e filosófico especifico, consegue passar, devido ao tom que a caracteriza, como uma obra bastante leve e simples. Já para não falar que é muito pequena, são pouco mais de 100 páginas. Desta vez li uma tradução e, aquela que li, pareceu-me muito bem, para além de ser mais acessível em termos monetários do que o original. É da Relógio d’Água e está à venda em todo o lado a um preço muito acessível. Então, se quiserem e tiverem interesse, recomendo-vos Cândido ou o Otimismo.
Idioma de leitura: Português
4,5/5