“Cartas a Milena”, Franz Kafka
Estou cansado, não consigo pensar em nada e quero apenas descansar a minha cabeça no teu colo, sentir a tua mão na minha cabeça e ficar assim por toda a eternidade.
Já vos tinha contado, no verão passado, quando vos falei de Letters to Vèra, a coleção de correspondência de Vladimir Nabokov para a sua esposa Vèra, que gosto bastante de ler a correspondência de escritores e artistas. Kafka é um dos escritores cuja correspondência pessoal é mais popular. E um dos escritores que mais admiro. Confesso que a minha primeira ideia era ler a sua correspondência a Felice, que foi sua noiva. Todavia, encontrei Letters to Milena à venda recentemente e decidi ler esta primeiro.
Franz Kafka e Milena Jesenská tiveram um caso amoroso relativamente breve mas, aparentemente, bastante intenso. Kafka conheceu Milena quando ela estava a traduzir obras dele para checo. O caso começou e terminou quase do mesmo modo, fugazmente. Enquanto durou, a correspondência foi bastante recorrente. Porém, eles não ficaram juntos. Milena era casada e não se divorciou do marido.
Podem questionar-se sobre o interesse de ler a correspondência de um autor. Realmente, não é o mesmo que ler uma obra sua. Mas, na verdade, como podemos nós conhecer a obra se não conhecemos o artista? Não vou ser pretensiosa ao ponto de dizer que ler aquilo que Kafka escreveu a uma amante me fez entendê-lo e mudou a minha perspectiva em relação às obras dele porque seria mentira. Mas, ler esta correspondência permitiu que eu o visse mais como uma pessoa. É como se antes a minha perceção dele fosse incompleta. É exatamente este aspeto que me fascina na correspondência dos artistas. Lemos estas coisas pessoais e entendemos que estas pessoas sentiam e viviam coisas iguais às que nós sentimos e vivemos. Podiam ser geniais, mas eram tão humanos como nós.
E claro, a questão poética. As cartas são lindíssimas. E desse ponto de vista não posso deixar de mencionar que, realmente, o que mais me cativou nelas foi a componente romântica. Confesso que também foi essencialmente por essa razão que eu quis ler a obra. Mas depois tornou-se mais do que isso.
A certo ponto questionei-me e, sei que qualquer pessoa que lê esta correspondência se questiona igualmente, em relação ao porquê de Kafka e Milena, que pareciam tão apaixonados e compatíveis, não terem ficado juntos. Bem, a certo ponto, eu comecei a pensar que foi exatamente por causa disso. Talvez a relação fosse demasiado intelectual e, parece-me a mim, a certo ponto, a existência do marido de Milena fosse fundamental à sua dinâmica.
Também não posso deixar de mencionar o quão mais belas as cartas ficam à medida que nos aproximamos do fim, quando o romance está praticamente condenado e a única saída é terminá-lo. As cartas mais bonitas, na minha opinião, são as que anunciam esse inevitável desfecho.
Em suma, eu gostei imenso desta leitura. E, como tal, não posso deixar de vos recomendar. Pode não ter ou contar diretamente uma história, mas, de certo modo, é exactamente isso que faz. E, o melhor de tudo é que conta uma história real. E dá-nos uma imagem de Kafka que nós nem sempre temos. Afinal, a obra dele não tem nada de romântico e/ ou sentimental. Além disso, não pode deixar de ser mencionado que, nesta correspondência, já se vê muito do indivíduo que escreveu obras tão claustrofóbicas e reflexivas como Metamorfose ou O Processo. A arte nunca se limita apenas à obra, tem muito mais a ver com o artista. E é exatamente por isso que é tão importante e interessante este tipo de leitura. Sei que existe uma tradução deste livro para português então, se puderem e tiverem curiosidade, não deixem de ler!
4/5