“Cartas a Véra”, Vladimir Nabokov
“Sim, preciso de ti, meu conto de fadas. Porque tu és a única pessoa com quem eu posso falar acerca da sombra de uma nuvem, acerca da canção de um pensamento – acerca de como quando eu hoje fui trabalhar e olhei para um girassol, ele sorriu para mim com todas as suas sementes.”
Lolita é um dos meus livros preferidos de sempre. Definitivamente no Top 5. Há uma parte do meu apreço por esse livro que se prende com a narração, com o estilo, com a qualidade da escrita, com o seu autor. Há ali uma pequena história da literatura. Por conseguinte, Nabokov tornou-se um dos autores que mais aprecio. Em consequência desta admiração, descobri certa vez este Letters to Véra, uma coleção completíssima de cartas que o autor escreveu à esposa Véra ao longo dos anos. As quase 900 páginas não me impediram de começar esta leitura. E porquê lermos a correspondência de alguém, neste caso, de um autor? Bem, se não pela poesia e pelo cariz quase literário que nunca abandona realmente qualquer coisa que um escritor escreva, pelo menos por tudo aquilo que podemos conhecer e descobrir acerca do dito autor.
Não faz, de todo, sentido apresentar um resumo deste livro porque não há uma história, mas apenas um relato. São as cartas de Nabokov à esposa e nada mais do que isso. Mas então a questão mantém-se, porque é que isto é interessante?
Bem, primeiro porque prova que a facilidade que hoje em dia existe em publicar um livro, nem sempre existiu, o que me perturba sinceramente. Hoje em dia, qualquer pessoa publica qualquer coisa, não existem filtros e os que existem sufocam constantemente aquilo que é bom em prol daquilo que vende. Na altura, Nabokov, hoje presença no cânone e considerado um dos maiores e mais influentes escritores, lutou muito pela sobrevivência e as cartas a Véra provam isso mesmo. Ele não conseguiu sempre publicar, teve de andar de país em país a tentar estabelecer conexões, teve de deixar a esposa e o filho, teve de traduzir coisas das quais não gostou e dar aulas sobre temas que não apreciava. Até ao sucesso de Lolita, as coisas foram difíceis para os Nabokov. Está claro que isto não lhe aconteceu só a ele. Houve uma altura em que era muito difícil publicar, sobretudo algo que fosse bom e que tivesse impacto. Sabiam, por exemplo, que Ulysses de Joyce e Em Busca do Tempo Perdido de Proust, duas obras magnificas ainda hoje altamente consideradas, foram diversamente recusadas por editores? Antes disso, no século XVIII e XIX o quão difícil foi para Austen ou para as Bronte publicar? As facilidades de hoje nem sempre existiram. Um autor hoje em dia é capaz de viver da sua arte, por muito boa ou má que ela seja, mas não foi sempre assim. Cartas a Véra desromantiza a visão do artista e do escritor.
Em segundo lugar, as guerras. Véra era de origem judaica e sabem o que isso significou no século XX. Não bastando terem de lidar com a falta de dinheiro e de trabalho, os Nabokov não podiam viver em qualquer lado. Viajaram de um país europeu para outro em busca de um lar e de condições para viver. No fim, estabeleceram-se nos EUA. A Europa não era para eles.
Há ainda o cariz romântico. São cartas entre um casal. Apesar de uma grande parte da correspondência aqui exposta ter sido filtrada por Véra e se prender sobretudo com questões práticas, sobretudo monetárias, é inegável o peso romântico de muitas delas e a forma como elas dizem algo sobre esta história de amor. Claro que nenhuma história de amor é perfeita. Existe um ano da correspondência que, não só Véra não deixou que fosse integralmente transcrita, como a própria composição denota que algo não estava bem. Como podemos saber? Bem, não há, à exceção de nesse ano, uma única carta em que Nabokov não se dirija a Véra nos mais diversos e até exagerados termos carinhosos, ou em que não lhe diga o quanto a ama. Muito discutido quando se fala deste casal, é também o affair extraconjugal de Nabokov por volta de 1930. Mas o que fica com estas cartas, é que eles superaram tudo e que, apesar de tudo, gostavam muito um do outro. Por exemplo, e a título de curiosidade, houve um período de tempo, em meados de 1920 , em que Véra esteve internada numa clínica devido à sua saúde mental e física. Vladimir Nabokov escreveu-lhe todos os dias. Todos. São as cartas mais bonitas desta correspondência e, no geral, as mais bonitas que já li. São tão belas e poéticas. E não eram só cartas diárias. Ele mandava-lhe desenhos, jogos e enigmas para ela fazer. Feitos por ele. Muitos estão presentes nesta coleção. Palavras cruzadas, questionários, labirintos, etc. Se não é amor, é o quê?
Véra era importante para Nabokov também a nível profissional. Transcrevia-lhe textos e as suas opiniões eram muitas vezes decisivas.
Destaco também as borboletas. Não sei se sabem, mas Nabokov era um apreciador de borboletas e estudava-as. É muito interessante perceber que muitas vezes ele escolhia ir para determinados sítios só pela possibilidade de encontrar um nova borboleta e deixava de ir para outros por não existirem lá “muitas borboletas”. Interessante?
Além disso, lendo estas cartas, sobretudo as mais ternas e pessoais, percebi que todos os jogos de palavras que popularizaram Lolita não eram para Nabokov exclusivas à literatura que produzia. Eram parte de si. Da mesma forma, descobri também que a homenagem à literatura que se nota nesse livro e noutros, era igualmente parte dele. Vladimir Nabokov, além de apreciar profundamente a literatura, conhecia-a. O que muitas vezes é o mais difícil.
Não tem nada a ver, mas numa nota biográfica sobre Jane Austen (outra autora com uma vastissíma e interessante correspodência), o seu irmão escreveu, quase em tom de brincadeira, que ela nunca despachava uma carta sem que ela estivesse boa o suficente para publicar. Tem a sua graça, mas até que ponto não é verdade? Estes escritores, sobretudo os mais "recentes", como Nabokov, não teriam consciência disto mesmo? Porque isso explicaria muito.
Em suma, sei que não é tão comum ler a correspondência de um autor como ler a sua obra. Mas sinceramente, é igualmente importante. Se não percebermos quem é alguém, como é que podemos perceber o que ele faz? Conseguimos, claro, mas não é o mesmo. Claro que isto não é apelativo para alguém que apenas “goste” de literatura. Mas para quem “Gosta” de literatura, para quem a aprecia e a tenta compreender, porque não ler a correspondência dos seus autores prediletos? Se por acaso gostam tanto de Nabokov como eu, não podem deixar de ler Cartas a Véra, nem que seja só para lerem as mais poéticas e belas declarações de amor:
“You came into my life-not as one comes to visit (you know, “not taking one’s hat off”) but as one comes to a kingdom where all the rivers have been waiting for your reflection, all the roads, for your steps”.
Idioma de Leitura: Inglês
4/5