“Casa de Bonecas”, Henrik Ibsen
Esta casa não tem sido nada além de um parque de diversões. Tenho sido a tua esposa-boneca, tal como em casa era a filha-boneca do meu pai; e aqui os nossos filhos têm sido as minhas bonecas.
Casa de Bonecas de Ibsen foi encenada pela primeira vez em 1879 na Dinamarca e causou um rebuliço tão grande que foi falada um pouco por todo o lado. Dividiu opiniões à época e extremou posições entre aqueles que lhe reconheceram a inovação e a pertinência e os que a acharam conservadora e excessiva.
Casa de Bonecas é uma peça em três atos que localiza a sua ação na Noruega do final do século XIX e acompanha o casamento de Nora e Torvald Helmer. No primeiro acto conhecemos a situação que serve de motor à narrativa. Nora contraíra ilegalmente um empréstimo para conseguir suportar as despesas com o marido quando este se viu doente. Agora, Nora está a ser chantageada por um colega do marido – Krogstad - que se pretende valer do seu conhecimento da situação para conseguir que Nora interfira por ele junto de Torvald – seu superior no banco onde ambos trabalham. No segundo acto observamos os esforços de Nora para tentar contornar esta situação sem que o marido dela tome conhecimento. No último acto dá-se o inevitável e lemos sobre como o Torvald se vira contra Nora e a responsabiliza pela sua iminente perda de honra e como, no minuto seguinte, ao saber que Krogstad não pretende seguir em frente com as suas ameaças, mas deixar a situação cair no esquecimento sem consequências para nenhuma das partes, vemos Torvald agir como se nada tivesse acontecido. Tarde de mais, visto que o seu comportamento elucida Nora em relação à vida que tem vivido e ao seu papel como mãe, esposa e, sobretudo, enquanto personalidade individual.
Não evito sublinhar a ilustração do seria então um casamento da classe média e de qual era o papel da mulher, no casamento e na sociedade. É impressionante para o leitor contemporâneo a incrível infantilização de Nora. Por parte do marido, mas também por parte das personagens em seu redor. É uma infantilização tão vincada que é evidente que é propositada, mas isso para o bem do argumento principal. De facto, quando lemos Nora parece que estamos perante uma criança e não perante uma pessoa adulta, uma mãe e uma esposa.
No entanto, igualmente impressionante é a profunda condescendência com que o Torvald trata Nora e o modo como, no final, parece tão disposto a desprezar a sua pessoa quando pensa que ela lhe custará a honra e reputação, como em passar uma borracha sobre o assunto como se nunca tivesse ocorrido sem sequer um pedido de desculpas ou uma conversa sobre o sucedido.
Sublinho também o impacto significativo da peça à época. Como sabemos sensivelmente por volta desta altura se observavam já movimentos de emancipação feminina, pelo que a peça foi considerada como dotada de um pendor revolucionário e teve repercussões relevantes nesse âmbito. Todavia, também é verdade que, para uma sociedade ainda conservadora, a exposição deste tipo de situação causou igualmente revolta contra a personagem Nora, sobretudo devido ao final da peça. Esse final, aliás, foi tão controverso que Ibsen se viu na posição de ter de escrever um final alternativo para a peça sob o prejuízo de o fazerem por ele.
Por fim e a título de curiosidade, acrescento que Casa de Bonecas foi, na verdade, supostamente baseada em algo real. Laura Smith Peterson era próxima de Ibsen e ficou associada a esta peça. O marido de Peterson, como Torvald, também adoeceu e, para suportar o seu tratamento, Laura contraiu um empréstimo sem o conhecimento do marido e recorrendo igualmente a falsificações. Quando inevitavelmente a situação foi revelada, o marido pediu o divórcio e Laura ficou sem a guarda dos filhos e viu-se internada na instituição psiquiátrica. Ibsen estaria a trabalhar em Casa de Bonecas quando tudo isto ocorria.
A peça está traduzida e parece-me uma daquelas obras que nunca deixará de ser profundamente atual e, consequentemente, altamente pertinente.