“Consolação da Filosofia", Boécio
“Contemplai a extensão do céu, a sua estabilidade e célere movimento, e de uma vez por todas deixai de admirar coisas vis. E o céu não é mais admirável, em boa verdade, do que a ordem com que é governado. Como é arrebatadora a magnificência da sua beleza, como é veloz e mais fugaz do que a mutabilidade das flores primaveris.”
Quando comecei a ler este livro não tinha expectativas por aí além. Até porque não foi um livro que eu tivesse decidido ler. Porém, assim que iniciei a leitura percebi que estava perante algo extremamente belo. Acabei por o ler num instante e estou super agradada com o facto de esta leitura se ter proporcionado.
Consolação da Filosofia foi escrita pelo filosofo, poeta, teólogo e senador Boécio, por volta do ano 524, enquanto o mesmo se encontrava na prisão, a aguardar julgamento depois de ter sido condenado por traição por ter apoiado um senador acusado do mesmo crime. A obra é um prosímetro, isto é, alterna entre prosa e verso, e começa de uma forma peculiar. Na prisão, Boécio é visitado pelas musas da poesia. Porém, ao contrário dos poetas clássicos, que aproveitavam estas visitas para comporem grandes poemas, como Homero, Boécio expulsa estas musas. Após tal expulsão, aparece, claro, a Filosofia. E essa sim, vai consolar o prisioneiro através de um diálogo lindíssimo (e poético, quem diria) em que diversos aspetos da vida e da mortalidade e eternidade são abordados.
O diálogo entre Boécio e a Filosofia fez-me muito lembrar a obra de Platão e nota-se que o mesmo teve influência em Boécio, nas suas ideias e na sua forma de pensar a vida. Afinal, até a situação com as musas faz lembrar a passagem em A República em que Platão expulsa os poetas da cidade perfeita.
Achei este aspeto particularmente interessante. Este debate sobre a razão e a poesia, entre a realidade e a fantasia, a ficção, nunca "não existiu", pois não? Tivemos sempre os dois em oposição e nunca juntos, aniquilando-se e não apoiando-se. Sinceramente, nunca vou entender porquê. Em mim há espaço para os dois. Aliás, se seguem o blog, sabem que, embora sendo uma grande Romântica e a maior parte dos livros dos quais faço review aqui serem de ficção, muitas vezes leio e falo aqui de obras de filosofia. Já para não falar do facto de muitas obras de ficção serem meramente um disfarce para a abordagem segura de situações e acontecimentos francamente sérios. Dito isto, também entendo o porquê da fantasia, ficção, imaginação, ser uma "ameaça” à razão. Mas, a razão é também uma “ameaça” à imaginação, criatividade e individualismo. E, pessoalmente, não sei se haverá algo pior do que isso.
O que acho irónico é que, mesmo após a expulsão das musas da poesia, a poesia não abandonou Boécio. Achei todo o texto bastante literário e nada como os típicos livros de filosofia. Já para não falar dos poemas que aparecem entre a prosa. Podemos abandonar a arte, a poesia, a imaginação, a fantasia ou a ficção, o que lhe queiram chamar, mas a arte nunca nos abandona, pois não? Sonhar faz parte de nós. Até a “cidade perfeita” só poderia ser concebida por um sonhador.
Existem nesta obra imensos elementos a serem abordados. E eu não tenho aqui espaço para falar de tudo, nem tenho a arrogância de pensar que compreendi tudo ou que tenho autoridade para debater tais assuntos. Contudo houve uma parte que eu achei de uma beleza extrema.
A certo ponto Boécio escreveu que a felicidade é o bem supremo e o prémio dos bons. Escreveu que as pessoas felizes são deuses, que o prémio dos bons é tornarem-se deuses. Não é algo belo de se pensar? Deixo-vos a citação completa:
“Uma vez que a felicidade é o próprio bem, é evidente que todos os bons, pelo próprio facto de serem bons, se tornam felizes. Por outro lado, aqueles que são felizes é razoável que sejam deuses. Existe, com efeito, um prémio dos bons, que nenhuma passagem do tempo pode corroer, nenhum poder, seja de quem for, pode diminuir, nenhuma maldade pode ofuscar, e esse prémio é tornarem-se deuses.”
Boécio escreveu diversas obras para além de Consolação da Filosofia e é considerado o “último romano" e o primeiro filosofo da escolástica. As suas obras, durante o período medieval, serviram como uma forma de acesso à antiguidade clássica, nomeadamente em termos da filosofia, matemática e, sobretudo de música. Só isso já atesta a sua importância. Dante falou também nele em A Divina Comédia da qual já fiz aqui review. E Consolação da Filosofia em particular? É tão bonita e comovente! Especialmente quando nos lembramos do contexto em que foi composta. Vale muito a pena e eu recomendo-vos sinceramente a leitura.
Idioma de Leitura: Português
4/5