“Crime e Castigo”, Fiódor Dostoiévski
“Todos derramam sangue, que corre e sempre correu neste mundo, como uma catarata, que vertem como champanhe, e pelo qual são coroados no Capitólio e depois chamados benfeitores da humanidade. Tu olha com mais cuidado e vê se compreendes! Eu próprio queria o bem das pessoas e era capaz de fazer centenas, milhares de boas ações em vez desta asneira, que nem sequer é uma asneira mas simplesmente um absurdo, porque toda esta ideia nem era assim tão estúpida como agora parece. Ao falhar, tudo parece estúpido! Com esta asneira queria apenas colocar-me numa posição independente, dar um primeiro passo, alcançar os meios, e depois tudo seria expiado por um benefício incomensuravelmente maior… Mas nem o primeiro passo fui capaz de suportar, porque sou um canalha! É nisso que está toda a questão! Em qualquer caso, não passarei a ver as coisas do vosso ponto de vista: se tivesse conseguido, coroavam-me; como não consegui, estou encurralado.”
No início do ano passado li Os Irmãos Karamazov, agora, na primeira semana de 2020 venho falar-vos sobre Crime e Castigo. Fiquei muito impressionada com Os Irmãos Karamazov na altura. Como vos contei no último post, foi dos livros que mais gostei de ler em 2019 e também de sempre. Decidi logo que queria ler tudo o que me faltava ler de Dostoiévski e decidi igualmente que ia começar pelos mais volumosos. Sim, esse foi o meu critério. Cada um com a sua.
Crime e Castigo (1866) segue Raskólnikov, um estudante universitário de 23 anos que comete um crime ao assassinar uma velha mulher de mau nome e a seu filha, uma jovem de fraco intelecto e explorada pela mãe (e pela sociedade no geral). Ao crime segue-se uma investigação levada a cabo por um oficial que desde cedo se convence da culpa de Raskólnikov. Apoiado pela mãe, pela irmã, pelo amigo Razumikhin e pela prostituta Sónia, Raskólnikov luta ao longo da narrativa com o seu crime e com as implicações do mesmo, tanto a nível de consciência, como a nível social e legal.
Para mim a melhor parte de toda a história é a razão do crime. O que leva um estudante universitário a cometer um crime desta natureza? Como é que ele sequer se lembra disso? Como é que a ideia lhe surge? Pois bem, deve-se, na verdade a uma ideia que foi especialmente importante no passado e que ainda encontra ecos hoje em dia. Raskólnikov acreditava que, determinadas pessoas, pela sua superioridade natural e intelectual, poderiam e deveriam cometer alguns crimes em prol de um bem maior. Esta ideia que eu expresso aqui de forma bastante sintética e talvez até simplista, é elaborada por Raskólnikov num artigo que ele publica anterior ao crime e que a polícia utiliza contra si. Como exemplo, chega-se a referir o caso de figuras históricas, como Napoleão Bonaparte, célebres por sacrificar o bem de alguns para aquilo que acreditavam ser o bem comum. Quero sublinhar que isto não se trata de uma apologia deste tipo de fenómeno, mas apenas uma comparação que a citação que utilizei no início do post sintetiza.
O que eu aprecio aqui verdadeiramente é o dilema que isto causa e a forma como este é, ou não, aceite. Mesmo que o raciocínio seja correto e o bem comum justifique o sacrifício do bem de uma minoria, que tipo de pessoa consegue viver com isso? Daí o par crime/castigo.
O que levanta uma nova questão: maior castigo é o que infligimos na nossa consciência com o nosso crime ou aquele simbolicamente oferecido pelas leis da sociedade? Gostei imenso da vertente filosófica e psicológica da obra que tanto me fez lembrar Os Irmãos Karamazov, mas que até considero mais presente aqui. Novamente a título pessoal, considero que é esta vertente que torna a obra do autor tão incrivelmente claustrofóbica e às vezes bastante aflitiva até para o leitor. As questões aqui expressas são, como brevemente exemplifiquei com a referência a estes dilemas concretos, muito complexas.
Também não posso deixar de mencionar o peso da religião e a forma como Raskólnikov não a considera. Há além disso uma clara referência aos intelectuais da época que não acreditavam em Deus e assim hipotéticamente ameaçavam o bem e a ordem social. Esta questão está, de resto, muito mais presente em Os Irmãos Karamazov.
Uma menção a Sónia, a prostituta que Raskólnikov senta ao pé da mãe e da sua casta irmã. Sónia não exerce esta profissão por outra razão senão pela obrigação de ajudar a família e, a sua dedicação a Raskólnikov apelou muito ao meu encanto e preferência por plots românticos que vocês já conhecem. Achei interessante que, no fim, seja ela que o ajuda a redimir-se e é o seu amor que se torna para ele indispensável em comparação com todas as outras superfluidades. Citando o autor, “o assassino e a prostituta”.
Bem, suponho que adivinham a minha opinião e considerações finais. Refiro-vos apenas que a obra está traduzida em português e conta com várias e diversas edições. Eu preferi a tradução de António Pescada para a Relógio d’Água, porque são sempre traduções que me agradam. Todavia, sei que existem mais traduções e também para outros idiomas, se assim preferirem.
Realmente, não vos podia recomendar mais esta obra. Gostei mesmo muito. Já leram? O que acharam?
5/5