“Dom Quixote de La Mancha”, Miguel de Cervantes
“Quando a própria vida parece lunática, quem pode saber onde está a loucura? Talvez ser demasiado prático seja loucura. Desistir de sonhos – talvez isto seja loucura. Demasiada sanidade talvez seja loucura – e a maior loucura de todas: ver a vida como ela é, e não como ela devia ser!”
Começo por vos dizer que esta é uma das reviews que estou mais feliz por fazer. Por duas razões. Primeiro, porque há muito tempo que queria ler este livro. Segundo, porque ele é mesmo muito grande e para mim, que estou habituada a ler “à velocidade da luz” (e da noite), foi especialmente estranho demorar praticamente duas semanas a acabar um livro. Admito, com alguma vergonha, que foi por isso que não li este livro mais cedo. Agora, sinto que me saiu um peso de cima (porque todo o bom leitor tem de ler Dom Quixote), e que saí desta experiência muito mais enriquecida, porque o livro realmente justifica o seu estatuto no cânone literário.
Bem, como provavelmente sabem, Dom Quixote narra a história de um homem, Alfonso Quijano, que gosta tanto de ler Romances de Cavalaria, que a certo ponto começa a viver como se fosse o protagonista de um. Como explica o narrador, “de tão pouco dormir e de tanto ler, o seu cérebro secou e ele perdeu completamente o juízo". Desta forma, Alfonso, um homem já de meia idade, decide sair de sua casa em busca das aventuras que povoam as histórias dos cavaleiros andantes nos populares romances medievais. Para validar ainda mais a história, decide mudar o seu nome para um mais adequado a um cavaleiro, escolhendo para esse efeito, Dom Quixote, acrescentando um indicativo da sua origem, daí o "de La Mancha”. Como a um cavaleiro não pode faltar uma donzela pela qual ele lute e a quem se dedique, Dom Quixote escolhe Aldonza Lorenzo e, claro muda-lhe o nome para um mais romântico, “nascendo” Dulcinea de Toboso, ou para citar o narrador “la sin par Dulcinea de Toboso”. Ademais, como um bom cavaleiro também precisa de um bom escudeiro, Dom Quixote conta com a companhia de Sancho Panza, um pequenino, gordinho e pobre trabalhador da zona que não podia parecer-se menos com um escudeiro. Como é que Dom Quixote o convence a acompanhá-lo numa tal aventura? Promete dar-lhe um governo. E assim partem os dois em aventura, Dom Quioxte no seu famoso cavalo Rocinante e Sancho Panza no seu burro.
Acho que um dos melhores exemplos daquilo que se passa em toda a obra é um episódio muito conhecido da primeira parte da obra. Logo no início das suas aventuras, Dom Quixote dá de caras com uns moinhos de vento. De onde está, convence-se que aqueles moinhos são na verdade gigantes, como os que povoam os livros que lê. Como um verdadeiro cavaleiro, a sua resolução é avançar e lutar com os terríveis gigantes. O fiel escudeiro Sancho Panza tenta dissuadi-lo e explicar-lhe que aquilo não passam de moinhos de vento, mas em vão. Dom Quixote avança sobre os moinhos/gigantes no seu Rocinante e acaba por ser derrubado pelas pás de um. No final, declara que um mágico tinha transformado os gigantes em moinhos para o impedir de alcançar uma grande vitória. Daqui sai a popular expressão "Lutar contra Moinhos de Vento”, ou seja, lutar em vão, ou lutar com algo que não existe.
A certo ponto na obra, uma das personagens diz acerca de Dom Quixote: “não o livrarão da sua loucura todos os médicos e bons tabeliões do mundo: é um louco inveterado, cheio de intervalos de lucidez.” Ao longo da obra, muitos dos amigos de Dom Quixote questionavam repetidamente o que podia ter levado um homem de bom senso a agir como um louco. Tenho de ser franca, de tantas vezes que li isso que a certo ponto já só queria que eles parassem de o tentar compreender e o deixassem ser louco à vontade. Já só pensava que eles claramente não o conheciam assim tão bem, e que a pergunta mais adequada seria o que é que leva um louco a agir como uma pessoa de bom senso.
Para mim uma questão mais importante é, o que levava Sancho a acreditar também nas ideias e visões de Dom Quixote? Porque, se no início ele foi retratado mais como um oposto de Dom Quixote, como a parte da “razão", no final ele já acreditava nas mesmas coisas que o seu amo. Numa espécie de ‘folie à deux’, penso. A maior parte das pessoas (e as personagens na obra), pensam que Sancho acreditava em tudo o que Dom Quixote dizia e fazia por ser muito simples e humilde, mas essa não me parece uma explicação boa o suficiente. Contudo, também ainda não consegui arranjar uma melhor.
Várias coisas me partem o coração nesta obra, mas neste momento, escolho três exemplo: a loucura (muito humana), que nem loucura é, de Dom Quixote e a rendição à mesma de Sancho; o facto de ao longo de toda a obra, eles terem tido pessoas a ridiularizá-los e a tratá-los de forma muito pouco humana, só para se divertirem de uma loucura que, tenho a certeza, também eles tinham e que só lhes faltava a coragem de a expressar; e por fim, o final da obra (que não vou contar).
Enfim, Dom Quixote, publicado no início do século XVII (em duas partes) permanece até hoje como uma das obras mais populares e influentes de sempre. Há um tempo, a Academia Sueca (que atribui o prémio Nobel) fez um inquérito a escritores de todo o mundo acerca da melhor obra já escrita. Dom Quixote ficou em primeiro lugar, seguido de Em Busca do Tempo Perdido e de Guerra e Paz. Não sei se concordo, mas compreendo totalmente. Este livro não vale só pela complexidade, pela estrutura, pela inovação que trouxe e da qual foi pioneira, mas também pela problemática e pelo tema muito sério que aborda de uma forma cómica. Para mim, sem dúvida que o que mais gostei foi essa vertente. E o facto de ser um livro sobre um livro, a literatura a falar sobre si mesma e a tentar compreender-se, o escritor a educar o leitor. É lindissímo.
Não consigo contar pelos dedos quantas obras e quantos escritores Dom Quixote influenciou em todo o mundo, desde lá do século XVII até agora. É ridículo pensar sequer em fazer isso. Muitos dos nossos escritores preferidos e mais populares eram fãs de Dom Quixote e, por conseguinte, transportaram para as suas obras muito da obra de Cervantes. O exemplo mais rápido de que me lembro foi quando Dostoiévski escreveu que não existia nada mais poderoso nesta vida que Dom Quixote, chamando-lhe “a maior expressão do pensamento humano, a mais amarga ironia que um humano pode expressar”. No mesmo tom referiu que se o mundo acabasse e as pessoas fossem questionadas acerca do seu entendimento e conclusões sobre a vida, “podiam entregar Dom Quixote e dizer ‘esta é a minha conclusão sobre a vida. Podes condenar-me por ela?’”.
Se tudo isto ainda não vos convenceu a ler esta obra, não sei mais que diga. Arrependo-me de ter demorado tanto a lê-la, porque agora sinto que quero ler muito do que já li outra vez só para perceber o que perdi, e que tudo o que vou ler a partir de agora, vai ter um novo sentido. Dom Quixote é muito grande, sim. A tradução portuguesa é cara, sim. Mas vale tanto a pena!
Idioma de Leitura: Espanhol
5/5