“Em Busca do Tempo Perdido”, Marcel Proust
“Sonhamos muito com o paraíso, ou antes, com numerosos paraísos sucessivos, mas são todos, muito antes de morrermos, paraísos perdidos, onde perdidos nos sentiríamos."
Finalmente. Se seguem o blog sabem que, no começo da primavera, quando tudo começava a florir, eu comecei a ler o primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, ou seja, Do Lado de Swann, livro sobre o qual escrevi aqui. Lembro-me de ter pensado na altura que mais valia escrever sobre cada um dos sete volumes à medida que os fosse lendo, mas a verdade é que, assim que os lia sentia-me tão possessiva em relação à obra que não queria sequer falar sobre ela, não queria que ninguém "ma tirasse", que ela nunca deixasse de ser só “minha”. Sei que é estranho, mas é a verdade. Há semanas, acabei o último volume e, se só escrevo sobre a totalidade da obra agora, é porque tenho estado num processo de luto em relação ao tempo que perdi a ler estes 7 volumes e que nunca vou perder outra vez, pelo menos não da mesma maneira. O meu grande desejo era poder perder este tempo para sempre e nunca o reencontrar.
Eu nem sequer sei como vos posso resumir Em Busca do Tempo Perdido. Cada volume é único e existem mil e uma personagens, mil e um enredos. Se o primeiro volume, Do Lado de Swann, tratava principalmente do amor de Swann, da infância do narrador, o segundo, À Sombra das Raparigas em Flor liga-se mais com uma inocência, uma adolescência, precisamente um florir de diversos seres e, consequentemente, de diversos e distintos amores. Do Lado de Guermantes foi para mim o mais virado para vida social, para a decadência de uma nobreza em declineo, sobretudo no que diz respeito a valores e morais. Sodoma e Gomorra destaca o amor homosexual, o Barão de Charlus, a cupidez dos alpinistas sociais e, novamente a decadência nos salões sociais da época. A Prisioneira e A Fugitiva focam Albertine e o amor do narrador por ela, a forma como o ciúme levou a que ele a privasse de uma vida que não pudesse ser controlada por ele, e a forma como ela se liberta dele e ele sente e ultrapassa a sua perda. O último volume – o mais filosófico -, O Tempo Reencontrado centra-se no Tempo, no envelhecimento, no propósito e causa de tudo, e na arte.
Este resumo tão aldrabado, desculpem-me a expressão, não faz jus a nada e eu tenho vergonha de o ter escrito e, se o escrevi, foi por mero descargo de consciência, porque ele diz zero sobre esta coisa extraordinária que é Em Busca do Tempo Perdido.
Se seguem o blog e leram com atenção este post, repararam que eu não acrescentei um título meu além do da obra e do nome do autor. É porque não há mesmo palavras que descrevam o que me aconteceu a ler esta obra, o que eu achei dela, o horror da consciência de que, provavelmente ainda muito me escapou, e a tristeza por não saber se um dia a vou compreender ainda mais profundamente.
Eu nunca tinha lido nada assim. E nunca nenhum livro me tocou tanto, me disse tanto sobre aquilo que eu sou, sobre as pessoas que me rodeiam, sobre os conceitos que a Humanidade criou e a partir dos quais regemos a nossa existência, sobre o mundo no geral. Em Busca do Tempo Perdido explicou-me a mim e explicou-me o mundo.
A minha tristeza quando acabei o último volume, a forma em como fiz trinta por uma linha para não ler todos os volumes de seguida, o modo desesperado como me coibia de ler as obras de forma compulsiva ... não me acontece muitas vezes e não me acontecia há séculos.
Se são apreciadores de Literatura, sabem que esta obra de Proust é muitas vezes considerada uma das melhores de sempre. Lembro-me de que uma vez, num inquérito a escritores de todo o mundo, a Academia, pediu para escolherem as melhores obras escritas. Foi em 2002 e Em Busca do Tempo Perdido ficou em segundo lugar, seguida de Guerra e Paz e perdendo apenas para Dom Quixote. Se me acompanham aqui sabem que eu já li tanto uma como a outra, até falei delas aqui, e digo-vos que, na minha opinião não há sequer comparação. Pessoalmente, digo com bastante arrogância (e desculpo-me por ela), li quase tudo o que é considerado clássico literário. Shakespeare, Dante, Cervantes, Milton, Tolstoi, Dostoievski, Ibsen, Ruskin, Victor Hugo, Nabokov, Austen, Flaubert, as Bronte, Dickens, Poe, Wilde, Joyce, Balzac, Fitzgerald, Kerouac, Steinbeck, Hemingway, Plath, Carrol, e outros mil, eu perco-lhes a conta. E adoro-os a todos. E todos me disseram algo sobre mim e sobre o mundo, mas é diferente.
Com Em Busca do Tempo Perdido eu não sei bem explicar o que me aconteceu. Parece que sou alguém diferente. Acho que é, para quem a aprecia, uma obra que deixa marcas profundas. As descrições das coisas mais simples, o apelo direto às sensações, as flores e as chávenas de café com leite, é perfeito. Quando a li, estava sempre impressionada, sempre triste e sempre fascinada, muitas vezes alegre e aliviada por enfim perceber algo, a maior parte das vezes sentia uma melancolia e uma nostalgia que ainda agora não sei bem compreender ou explicar. A única coisa que sei é que desejava nunca ter acabado de ler Em Busca do Tempo Perdido. Quem me dera puder passar todo o meu tempo emersa nela, quem me dera que ela fosse infinita, ou que pelo menos se prolongasse enquanto eu vivesse.
Tenho uma vontade gigante de a voltar a ler, mas o medo de não voltar a sentir o mesmo aterroriza-me tanto que não sei se algum dia o farei. De cada vez que relemos uma obra, há uma inocência que se perde e sempre que isso acontece há um coração que se parte e uma parte de nós que desaparece ou pior, que muda de tal forma que nunca volta a ser a mesma.
O que a obra nos diz sobre o amor e sobre o ciúme, sobre o ser e sobre a decadência da sociedade e de nós mesmos, e sobretudo sobre o Tempo e sobre a arte e o impacto dela na vida é tão puro e humano que me custa a crer que alguém o tenha conseguido por em palavras, ainda por cima de forma tão crua, clara e poética.
Estou completamente rendida e acho que isso já ficou claro, não vale a pena insistir. Foi o melhor livro que li na minha vida e, embora saiba que ainda só assisti a 23 primaveras, vou cometer uma nova arrogância e dizer que tudo o que é considerado grande clássico literário, eu já li. E se guardei este para o fim, tive um motivo que não se prendeu exclusivamente com a sua extensão. Portanto, não me parece que um dia vá encontrar algo melhor, nem que viva por mais 100 anos.
Concluo assumindo que, para alguém que não esteja habituado a ler com frequência, ou a ler este tipo de livro, não vai apreciar e muito menos compreender Em Busca do Tempo Perdido. Mas para quem está, aconselho. Muito. De todo o meu coração e não obstante o sentido de posse em relação a ela que, entretanto, adquiri, e que me compele a não falar dela a ninguém para ela ser só minha. Se puderem, não deixem de a ler. A tradução para o português, que me alarma tantas vezes, está francamente, na minha opinião, boa e eu aconselho-a. A obra é traduzida por Pedro Tamen e é editada pela Relógio d'Água que tem uma edição mais acessível - que é a minha e que podem ver na fotografia no início do post -, e uma mais cara em capa dura. A versão francesa, claro, é mais acessível e sempre preferível, e encontra-se com muita facilidade.
Digam-me se já leram! Se ficaram com curiosidade de ler ou se vão ler, mas não ignorem Em Busca do Tempo Perdido.
Idioma de Leitura: Português e Francês
5/5