James Joyce — “Retrato do Artista Quando Jovem"
Quando um homen nasce … são lhe lançadas redes que o impendem de voar. Falas-me de nacionalidade, de linguagem, de religião. Tentarei voar além dessas redes.
Se não estou em erro, penso que esta é a terceira obra de Joyce sobre a qual vos escrevo este este ano. No fim do verão escrevi-vos sobre Finnegans Wake, no fim do inverno sobre Dubliners. No ano passado ou no anterior, escrevi-vos sobre Ulisses - uma das minhas obras preferidas de sempre. Isto também quer dizer que esta é a última vez que escrevo sobre algo deste autor, justamente porque só me restava ler Retrato do Artista Quando Jovem, que terminei na semana passada e que muito me impressionou.
Retrato do Artista Quando Jovem (1916) foi a primeira obra de James Joyce e acompanha a evolução de Stephen Dedalus (que voltamos a encontrar em Ulisses!) muito no estilo de um Bildungsroman. Ao longo dos seus cinco capítulos, esta obra mostra-nos o desenvolvimento intelectual do protagonista atentando em aspetos e momentos da sua infância e da sua educação, focando sobretudo temas religiosos, políticos, familiares e artísticos. Por exemplo, observamos experiências do herói na escola com os colegas, em casa com a família (sobretudo a mãe), na Igreja e, mais tarde, na universidade. No fundo acompanhamos todos os momentos que mais contribuíram para o desenvolvimento pessoal e intelectual do personagem e para o seu melhor entendimento de si e do mundo em seu redor.
Característico da escrita do autor, predomina em Retrato do Artista Quando Jovem o discurso indireto livre que melhor permite ao leitor o acesso aos pensamentos do protagonista, assim como algo da técnica de fluxo de consciência que caracteriza a obra do autor. Pessoalmente, estou convencida de que a presença desta técnica nesta obra ainda não é tão enfática como em outras obras de Joyce, mas tal é apenas natural, sendo esta a primeira obra publicada do autor.
Existem três aspetos muito importantes nesta obra que eu gostaria de sublinhar. O primeiro tem a ver com a identidade do protagonista, cuja formação parece ser o principal motivo da obra e é importante na medida em que é construída em relação à sociedade que o acolhe e ao modo como ele tem de se conformar, ou não, com as tendências que ela dita. Em seguida, destacaria a presença da religião que, com efeito, é bastante forte e sobretudo explorada face ao modo como Stephen se vai afastando do contexto católico em que cresce e é educado e à forma como o vai questionando. Este tópico está particularmente ligado ao terceiro aspeto que mencionaria e que é a questão da identidade nacional da Irlanda que, como sabemos, foi e ainda é alvo de reflexão profunda. Existem leituras da obra que relacionam inclusive a procura de Stephen pela sua identidade com a procura da independência pela Irlanda. Pode ser, mas o que permanece comigo da obra em relação a este aspeto é realmente uma espécie de rejeição de Stephen do nacionalismo a par de uma preocupação clara com o futuro do país e da identidade dele. Por fim, destacaria a educação artística de Stephen, sobretudo notória no quinto e último capítulo. Os diálogos sobre a arte, sobre o belo, sobre o propósito do artista e da sua arte e as inúmeras referências a diversas doutrinas anteriores são de uma beleza extraordinária. Destaquei estes quatro aspetos porque creio que são aqueles que mais moldam o crescimento individual, espiritual e intelectual, do protagonista e que serve de motivo à obra.
Outro aspeto muito interessante é notar como se desenvolve a obra em função da evolução do herói, algo sobretudo visível na evolução da linguagem que se vai tornando mais complexa à medida que a obra se aproxima do final, uma complexidade que acompanha a evolução interior de Stephen. Simultaneamente, também vai aumentando a componente intelectual, com cada vez mais referências a outros autores e obras, desde literatura a filosofia. É como se a obra se desenvolvesse com o protagonista. É um aspeto que achei muito interessante.
Estou muito convencida de que esta é a obra de Joyce com uma leitura mais fácil. Não é que não seja igualmente complexa, mas que se lê com maior facilidade é inegável. E já se podem encontrar aqui muitos dos temas que surgem depois em outras obras do autor, sobretudo em Ulisses e em Finnegans Wake.
Como calculam, foi uma leitura que me cativou bastante e que, por tudo o que já enumerei, recomendo. E, se nunca leram nenhuma obra de Joyce, parece-me que este será o começo ideal. Lamento não ter eu mesma começado por aqui!
Já leram Retrato do Artista Quando Jovem? O que pensam deste autor? Qual a vossa obra preferida dele?
Termino este post com uma das últimas frases da obra, uma das minhas preferidas:
“Welcome, O life! I go to encounter for the millionth time the reality of experience and to forge in the smithy of my soul the uncreated conscience of my race.”