José Saramago, “Evangelho Segundo Jesus Cristo”
O teu Deus é o único guarda duma prisão onde o único preso é o teu Deus.
“Um escritor português, ateu confesso e comunista impenitente, como ele mesmo se apresenta, resolveu elaborar uma delirante vida de Cristo...”, escreveu D. Eurico Dias Nogueira em 1992, quando era então arcebispo de Braga, sobre Evangelho Segundo Jesus Cristo de José Saramago, publicado em 1991. Creio que esta é uma ilustração do conteúdo da obra e da reação que a sua publicação despertou.
Evangelho Segundo Jesus Cristo reconta a vida de Cristo tendo como base factos que, de facto, constam dos textos bíblicos, mas reinterpretando-os moderna e criticamente. A obra observa, por exemplo, a relação de Jesus com os pais, as suas viagens, os seus milagres, a sua relação com Maria Madalena e a sua relação com Deus e com o Diabo e, por fim, a sua morte. É, na verdade, exatamente como uma biografia. Inicia com a conceção de Jesus e termina com a sua morte.
Penso que, para mim, há um aspeto especialmente interessante. A obra compreende uma humanização da figura de Jesus Cristo. E isso é algo com que não nos deparamos com frequência. De certo modo, é fascinante. Enfatizo especialmente o modo como a relação conflituosa com os pais foi abordada e a relação muito humana e física com Maria Madalena. Da mesma forma, sublinho a componente emocional, o modo como são expostos os conflitos interiores de Cristo, a forma muito humana como reage a eles e como procede com base neles.
Noto também a representação de Deus. Existe um capítulo quase no final do livro que me impressionou especialmente e que consiste num diálogo entre Cristo, Deus e também o Diabo. É uma conversa em que Deus explica a Cristo a missão que lhe conferiu e, mais importante a meu ver, lhe narra o futuro. Há, por exemplo, uma passagem impressionante em que são listados os mártires da Igreja e o modo como morreram.
Está claro que ninguém pode esquecer, independentemente das suas crenças, que esta é uma obra de ficção. Não me parece que uma obra de ficção possa ser lida como algo mais do que isso, ficção. E, igualmente, não me parece que diga algo sobre si mesma, sobre quem a escreveu ou sobre quem a lê. Uma obra de arte deve ser encarada apenas como isso. E, a meu ver, deve ser apreciada e avaliada segundo isso.
Pessoalmente, eu tive uma educação religiosa; continuo a estar inserida num ambiente católico e ainda assim, independentemente daquilo em que acredito ou não, sei que esta foi uma das obras que mais gostei de ler de Saramago. E, se acompanham o blog, sabem certamente que Saramago é um dos autores que mais aprecio. E esta obra é, certamente uma das que o autor escreveu que eu mais recomendaria.