“Maggie Cassidy”, Jack Kerouac
Ela meditava e mordia os seus lábios: a minha alma começou o primeiro mergulho nela, profunda, inebriante, perdida; como se se afogasse numa poção de bruxas, céltica, enfeitiçante, estelar.
On the Road, ou em português, Pela Estrada Fora, é um dos meus livros preferidos de sempre e fez-me gostar muito de Kerouac, vulto maior da conhecida Geração Beat. No outro dia, quando estava numa livraria deparei-me com este Maggie Cassidy. Lembro-me de ter ficado muito surpreendida por ver Kerouac à venda aqui, no original e numa obra que não é On the Road. Decidi logo comprar, mas foi a história do livro que me entusiasmou para a leitura. Maggie Cassidy tem uma ligação com On the Road. O autor pensou-o como parte da mesma realidade. Foi muito entusiasmada que comecei a leitura.
Maggie Cassidy (1959) é uma história sobre um primeiro amor. A obra segue Jack Duluoz, um aluno do secundário que se apaixona pela mais velha e errática Maggie Cassidy. Os dois começam um romance que se torna rapidamente tão eletrizante e inconstante quanto Maggie.
Como é sabido, muitas das produções de Kerouac caracterizam-se pelo peso autobiográfico. Com Maggie Cassidy não é diferente e, segundo aquilo que pude apurar todas as personagens são baseadas em pessoas reais da vida do autor. Inclusive a sua Maggie e o romance que dá vida à obra. Maggie Cassidy e o seu romance com Jack Duluoz terão sido baseados em Mary Carney e no relacionamente desta com o autor. Aliás reparem na semelhança dos nomes: Mary/Maggie, Jack/Jack. Além disso, como curiosidade, notem também a semelhança do nome desta heroína e de Neal Cassady que, como sabemos, inspirou o herói de On the Road, Dean Moriarty.
Falo-vos disto porque gosto muito quando a semelhança dos personagens literários com as pessoas da vida dos autores é tão abertamente abordada e declaradamente assumida. É o aceitar do impacto da vida na arte.
Aspetos mais gerais que destaco. Como sabem, adoro a vertente romântica de qualquer obra, portanto calculam que adorei ler este livro sobretudo por esse aspeto. O romance aqui é “estranho”, mas muito humano e, por isso, doce. Porque é que digo isto? Há uma passagem em que o autor diz, muito sinteticamente, que o único amor é o primeiro, como a única morte é a última. Tenho pensado muito nisso desde que acabei de ler a obra e penso que percebo agora o que está em causa. A tal inocência que se perde, não é? É por isso que dizemos que não há amor como o primeiro? Porque é tão novo, é tudo tão novo, que as coisas são experienciadas de uma forma inocente e extrema que nunca volta a ocorrer?
Bem, eu acho que Maggie Cassidy é exatamente sobre isso. E funciona bem precisamente derivado a esse aspeto. Temos um adolescente que se apaixona pela primeira vez e sente e faz tudo de uma forma muito inocente e, como consequente, errática. E é tudo muito inebriante e deslumbrante e tudo isso passa para o leitor. E eu considero tal a melhor coisa da escrita de Kerouac: a expressão desse tipo de sentimentos extremos e impulsivos que dão à sua obra aquela essência tão rebelde e simultaneamente tão etérea que expressa tão bem a nossa nostalgia por tudo o que vivemos e nunca poderemos viver outra vez. E tudo sob uma representação que nos fascina e nos faz pensar que aquilo nunca nos aconteceu nem poderia ter acontecido. É uma romantização muito bela, porque é muito crua. Faz-me pensar que eu nunca vivi aquilo, que poderia ter vivido, que queria ter vivido. Mas na verdade é mentira, porque vivi, só que vivi de forma diferente. E isso ocorre com todas as obras dele, não vos parece?
Também não devo deixar de mencionar o lugar da obra em termos da tradição americana e da conceptualização do sonho americano, sempre presente em Kerouac, não esquecendo também a vertente coming of age e a óbvia inserção na tradição Beat que continua a ter um impacto extraordinário na vida e na cultura e produção artística americana. A história de Jack e Maggie ainda a podemos observar em muitos filmes americanos dos mais variados géneros. É, no fundo, a representação do típico primeiro amor, aquele que falha sempre porque nunca é 100% igualitário. Aqui, Maggie foi o primeiro amor de Jack, mas o Jack não o foi o primeiro amor da Maggie.
Uma última palavra para a semelhança de Maggie com o herói típico de Kerouac: eletrizante, errático, inacessível. O tipo de pessoa que nos fascina por não ser como nós, por nós querermos ser como ela e não conseguirmos nem podermos.
Em conclusão, confesso que com esta leitura me aconteceu o mesmo que com a anterior de Dostoiveski. Ou seja, a minha leitura foi influenciada e prejudicada pelas minhas expectativas de leitora. Sei que não podia nem devia esperar de Maggie Cassidy um On the Road, mas isso não me impediu de o fazer. E, portanto, sei que não apreciei nem li a obra como devia e como teria feito se nunca tivesse lido On the Road. Não obstante, gostei imenso, como é lógico. Afinal é Kerouac. E, como tal, não deixo de vos recomendar. Não tenho conhecimento de uma tradução para o português, infelizmente, penso que não existe. Mas se puderem ler no original em inglês está acessível em todo o lado, não é caro e não é longo. Sei também que existem traduções para o francês e para o espanhol, se preferirem e tiverem ficado com curiosidade de ler!
3,5/5