“Mathilda”, Mary Shelley
“Não sabemos o que significa este mundo amplo; a sua estranha mistura de bem e de mal. Mas fomos colocados aqui e foi-nos oferecida vida e esperança. Não sei no que devemos ter esperança; mas existe algo de bom além de nós que devemos procurar; e essa é a nossa tarefa na terra. Se o infortúnio vier ter connosco, temos de o combater. Temos de o colocar de lado e continuar a descobrir ao que devemos, por natureza, almejar.”
Esta semana venho falar-vos de uma leitura que foi, de facto, meramente de oportunidade. Conhecia a obra apenas de nome e, apesar de ter pensado em ler, foi apenas na semana que passou que, quando por acaso e enquanto procurava por outra obra me deparei com Mathilda e que pensei que, mais valia aproveitar esta época em que temos tanto tempo e tanta margem para o gerir como nos melhor aprouve para a ler.
Mathilda é contada na primeira pessoa pela protagonista que lhe dá nome e é, desde início, apresentada como uma história trágica e triste pela mesma. Refere a história controversa da relação de Mathilda com o seu pai. Começa por narrar a juventude do pai da protagonista e o seu amor pela sua esposa. Quando Mathilda nasce, a sua mãe falece e, com o desgosto, o seu pai parte também, deixando-a ao cuidado de uma tia. Mais tarde, na adolescência de Mathilda, ele regressa e ela passa a viver com ele num clima de paz e afetuosidade. Contudo, esta vivência é breve quando os sentimentos do pai por ela começam a extrapolar o campo do afeto paternal e a adquirir outros contornos, culminando numa separação dos dois e no desgosto e isolamento de Mathilda.
Muito se escreveu e se escreve em relação à (possível) semelhança entre a vida e a vivência de Mathilda e as de sua criadora. Como sabemos, Mary Shelley ficou sem mãe — a escritora e filosofa Mary Wollestonecraft — quando era também muito nova e era bem conhecido o afeto e a admiração do seu pai — o escritor e filosofo — William Godwin — pela esposa. Outras semelhanças incluem o facto de Mathilda estabelecer uma relação com um jovem poeta e de, Mary Shelley, como sabemos ter sido casada com o poeta Percy Shelley. Uma união que não teve o apoio de Godwin que, como o pai de Mathilda, se opôs à união da filha.
Independentemente deste aspeto, que vale o que vale, o que não pode ser negado é a originalidade da história que, se agora nos pode chocar, imagine-se outrora. Não que não seja um tema recorrente e abordado em diversas áreas e desde tempos tão remotos como a antiguidade clássica. A questão é que não surge desta forma. Quero eu dizer com isto que, quando este tema surge, é sempre tratado da mesma forma e nós tendemos sempre a ter a mesma reação, achamos que é terrível, que é anti-natural, que não ocorre, etc. O que é raríssimo é sentirmos compaixão pelos protagonistas de tais histórias. E foi isso que me aconteceu.
Uma palavra ainda para a relação que Mathilda estabeleceu com o poeta de quem vos falei. Também ele protagonista de uma história de amor condenada e imerso na sua própria tristeza. O que mais gostei neste âmbito (para além da vertente romântica e trágica!) relaciona-se com a forma díspar como ele e Mathilda encaram o futuro — ele confiante de que a sua existência tem um propósito e disponível para lidar com a sua tragédia pessoal de forma racional, e ela considerando que já nada se pode concertar e que o melhor fim é o alivio da sua presente situação.
E por falar neste aspeto, gostava ainda e por fim de mencionar o quanto gostei do final da obra e da forma como tudo se resolveu. Acho que fez todo o sentido e, apesar de ter consciência de que diferentes pessoas olham este fim de diferentes formas, não teria conseguido pensar num fim que se encaixasse melhor com a história e com aquilo que a mesma representa e diz sobre nós, sobre a nossa natureza e sobre a forma como lidamos com as nossas próprias mágoas e desgostos.
Creio que, quando lemos várias obras de um mesmo autor é quase impossível não as olharmos e compararmos. Aqui não foi diferente. Estava constantemente a relembrar-me de Frankenstein e a pensar como é que uma única pessoa pôde escrever coisas tão diferentes? Não em termos de qualidade, mas em termos de originalidade. E então pensei que isso realmente só pode vir da criatividade única de Mary Shelley que, frequentemente, não é devidamente apreciada; quer por ter vivido numa época dominada por incríveis poetas, quer por ser sobretudo associada a uma única obra, quer por ter vivido muito na sombra de outras personalidades. A verdade é que não vejo tanto escrito sobre Mary Shelley como sobre outros autores do mesmo tempo e certamente não vejo muito escrito sobre a sua obra que não seja focado em Frankenstein. E, após ler Mathilda, não entendo o porquê dessa atitude.
No geral gostei muito de Mathilda. Agora que já passaram uns dias desde que a conclui e olho para trás, vejo que não me consigo bem lembrar das expectativas que tinha quando a iniciei. E acho que isso tem a ver com o facto da obra as ter superado largamente. O que, independentemente daquilo que eu esperava ou não, é um ótimo sinal. Penso que existe uma tradução para português e garanto-vos que a obra se lê mesmo muito bem. É muito acessível em termos de vocabulário e é breve (o original não tem muito mais de 100 páginas). Para além de ser, por todas as razões que já enumerei, muito cativante. Então, se tiverem curiosidade, esta é uma ótima oportunidade para a lerem! Se já o fizeram, qual é a vossa opinião?