“Notre-Dame de Paris”, Victor Hugo
Um homem com um só olho é muito mais incompleto do que um homem cego, pois sabe o que lhe falta.
Victor Hugo começou a escrever Notre-Dame de Paris por volta de 1829, tendo a obra sido publicada dois anos depois, em 1831. Apesar de a obra hoje ser mais conhecida como O corcunda de Notre-Dame em função do seu protagonista, quando o autor começou a escrever Notre-Dame, o seu foco era a catedral de Paris e o ideal da arquitetura medieval que ela plasmava.
A ação de Notre-Dame de Paris tem lugar durante o período medieval, localizando-se em Paris de 1482 aquando do reinado de Louis XI e foca-se na catedral parisiense e nas personagens e histórias que com ela se cruzam. Quasimodo é uma das personagens centrais; tendo nascido disforme e sido abandonado pela mãe, Quasimodo foi adotado por Claude Frollo, o diácono principal de Paris, que lhe deu a função de fazer tocar os sinos de Notre-Dame todos os dias. Também central é Esmeralda, uma jovem dançarina Romani, que desperta o interesse romântico de Frollo que encarrega Quasimodo de a raptar. Todavia, o rapto não é bem-sucedido e Quasimodo é preso e Esmeralda salva. Mais tarde, Quasimodo acaba por ser ajudado por Esmeralda e apaixona-se por ela. Frollo, que não desiste de tentar capturar Esmeralda, acaba por fazer com que ela seja acusada e sentenciada à morte por um crime que ele cometeu, sendo agora Esmeralda salva por Quasimodo que a leva para Notre-Dame onde, por se tratar de um edifício religioso, ela não poderia, ao abrigo da lei, ser procurada ou presa. Todavia, tal impedimento é revertido pelo parlamento e a imunidade é levantada. O final da obra traça uma invasão à catedral e resolve as trágicas histórias de Esmeralda, Frollo e Quasimodo.
Como referi inicialmente, a obra foi concebida para tratar da história, significado e arquitetura da catedral de Notre-Dame, procurando sensibilizar a época para o valor da arquitetura gótica. Está, claro, implícita a crítica ao facto de, naquele período, se negligenciar a herança arquitetónica e procurar substituir construções do passado com novos modelos. Esta parece ter sido uma luta importante para Victor Hugo que, antes desta obra, já tinha escrito sobre este mesmo aspeto e em favor da arquitetura medieval que vinha a ser descurada e substituída. Nesse âmbito é importante relembrar que Victor Hugo viveu durante o período Romântico que, como é sabido, muito olhou, valorizou e idealizou a época e a cultura medievais. Este interesse do autor pela arquitetura gótica e a sua luta para que a mesma fosse valorizada e preservada justifica que a obra dedique tantas páginas à discrição da catedral e que toda a história se entrelace com ela.
Um outro aspeto significativo nesta obra é a escolha dos protagonistas. A jovem Esmeralda é de etnia Romani e Quasimodo é temido e odiado por todos em virtude das suas desformidades. A história relembra A Bela e o Monstro, mas é singular que seja protagonizada por personagens vistas como marginais. Novamente, deve notar-se que a obra resulta do período Romântico que privilegiou personagens tidas como à parte da sociedade. No mesmo âmbito, a personagem Frollo e a sua obsessão com Esmeralda recordam os romances góticos, também apreciados pelo Romantismo, e que, aqui, parecem encaixar especialmente bem com a defesa da catedral e da estética gótica que subjaz à produção da obra.
Aqui, Notre-Dame de Paris pode ser observada no grupo das obras que, a partir deste período, começaram a tratar de todas as camadas da sociedade, visto que tanto aborda Louis XI e a corte parlamentar, como os mendigos de Paris, os clérigos e a guarda, os artistas e os errantes e a sociedade civil. É certamente semelhante ao que Victor Hugo faria mais tarde em Os Miseráveis (1862).
Notre-Dame de Paris foi popular logo aquando da sua publicação e nunca deixou de o ser até à atualidade. Teve o mérito de produzir o efeito que o autor pretendera — encorajar a preservação do património gótico e, crê-se que terá mesmo contribuído para o revivalismo desse modelo que se verificou então. Atualmente, a maioria de nós está familiarizado com a história deste livro, mais não seja devido à adaptação da Walt Disney de 1996. Todavia, não sei até que ponto a real história e os propósitos de Notre-Dame de Paris são realmente conhecidos. Se tiverem interesse em conhecê-la, esta obra está traduzida em português pela Relógio d’Água e encontra-se com muita facilidade.