“O Primo Basílio”, Eça de Queiroz”
Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!
Penso que ainda não tinha tido oportunidade de vos falar sobre nada de Eça de Queiroz. É provavelmente o meu autor português preferido e se não vos falei sobre nada dele mais cedo foi porque a maioria das suas obras li quando era mais nova. Calhou muito recentemente falar sobre este autor e perceber que ainda não tinha lido esta obra. Na altura em que li as obras de Eça, apesar de não ter sido assim há tanto tempo, não era tão frequente existirem tantas e tão diferentes edições.
O Primo Basílio (1878) narra a história de Luísa e do seu caso amoroso com Basílio, seu primo. Nada de extraordinário não fosse ela casada. A obra, como todas as do autor, é uma crítica de costumes e foca a burguesia de Lisboa à época. Então, Luísa e o marido funcionam como o típico e feliz casal da classe média; ele é bem-sucedido, ela é romântica e os dois são muitos felizes até ele ter de se ausentar em trabalho e, durante esse período ela receber a visita do seu primo que regressa do Brasil após uma temporada ausente. Basílio é o típico bon-vivant da época e ele e Luísa já tinham um passado romântico. Quando reencontra Luísa, Basílio concentra os seus esforços em conquistá-la e ela, com o esposo ausente e a emersa em visões romanescas cede. O adultério é descoberto por uma das suas criadas, Juliana, que se aproveita da situação para chantagear Luísa por forma a colher benefícios para si. O resto da história narra o declínio que se segue a esta descoberta, o regresso do marido de Luísa e a forma como ela tenta contornar e suportar as consequências das suas ações.
O enredo é completado por outros personagens que funcionam como personagens-tipo já que pretendem representar diferentes tipos de pessoas da época. Por exemplo, Juliana é a empregada invejosa e amarga e Joana é a empregada mais espevitada e namoradeira; as duas amigas de Luísa pretendem opor dois tipos de mulheres, D. Felicidade funciona como a beata com vários problemas de saúde e um amor platónico que não consegue controlar e Leopoldina é a esposa que trai o marido, conhecida pela sua má-reputação; depois existe ainda o Conselheiro Acácio, muito formal, letrado e óbvio, Ernestinho que escreve e publica, mas só segundo o gosto do público, e Julião, um médico que não gosta de ser médico mas que quer ganhar dinheiro.
Sobre as personagens gostava de destacar ainda o amigo da casa, Sebastião, que em boa verdade me parece ser a única personagem que não pretende com a sua existência criticar algo. Penso que é um favorito entre os leitores. Pessoalmente, achei-o demasiado perfeito e talvez sensível a mais. Além disso, sei que é comum dizer-se isto, mas realmente achei a personagem de Juliana uma criação admirável; é, com efeito, um retrato extraordinariamente humano e real, ao ponto realmente de impressionar. Também gostei muito da figura de Acácio com toda a sua formalidade e banalidade e com o seu sentido de dever e de superioridade que ainda podemos observar em imensas pessoas. Como aliás todas as outras personagens; aos modos alteram-se, mas a essência não muda e, talvez por isso, este tipo de obra continue a fazer tanto sentido agora como fez outrora.
Gostava também de sublinhar o temperamento romântico de Luísa e o modo como a jovem romântica e sonhadora acaba por ser colocada em causa. Como sabemos, na altura criticava-se muito o hábito das jovens lerem romances por se pensar que elas eram predispostas a levar à letra aquilo que liam e, por conseguinte, colocar em perigo, ainda que talvez involuntária e ingenuamente, o sistema e as instituições sociais, comprometendo além da sua felicidade futura, o equilíbrio social. Assim, Luísa é aqui representada como uma jovem que apenas lê romances e leva uma existência banal e enfadada alimentada ainda assim por uma visão romântica e ideal da vida e das pessoas. Afastado o seu esposo, Basílio, com todo o seu passado e presente e a sua envolvência, acaba por surgir exatamente como um personagem dos romances que ela lia. Ainda não decidi se considero esta personagem uma crítica à jovem que lê romances ou ao estereótipo que a enleava à época, talvez aos dois? Devido aos tormentos que a vemos passar e ao claro arrependimento que ela manifesta é muito difícil vê-la como maldosa ou frívola como ocorre com Leopoldina, por exemplo. Não me parece sequer que Luísa seja uma crítica à mulher adúltera como o é Leopoldina. A verdade é que esta personagem me causou sentimentos contraditórios porque surge de tal modo que é quase impossível culpá-la de algo ou antipatizar com ela.
Além disso, não quero deixar de observar o quão estranho e simultaneamente como que mágico é ler sobre Lisboa e a baixa e corresponder aquilo que lemos ao que ainda vemos. Estava a ler como Eça descreveu as ruas do Chiado, os passeios até ao teatro São Carlos, o caminho até Arroios e como que senti uma espécie de nostalgia que não faço ideia de onde vem. Mas sei que ler sobre como estes sítios eram e como as pessoas lá viviam e pensar eles que são uma parte do meu dia é estranho, mas muito bom e belo. Não sei se vos acontece o mesmo?
Sei que uma das razões pelas quais gosto tanto de Eça de Queiroz é por a sua escrita e obra ser tão semelhante a outras das quais gosto mesmo muito. Sobretudo se compararmos com outros autores portugueses, nota-se muito uma semelhança entre Eça e aquilo que se escrevia pela Europa na sua época. Particularmente a crítica de costume relembra-me muito os ingleses, os enredos lembram-me os franceses. O próprio modo e estilo é próximo. Por exemplo, olhando esta obra é quase impossível não recordarmos Madame Bovary ou A Dama das Camélias (aliás, A Dama das Camélias é um dos livros preferidos de Luísa!) ou qualquer romance inglês dos séculos XVIII e XIX.
Por fim, queria reiterar o quanto gostei de O Primo Basílio. Tornou-se por agora a minha segunda obra preferida de Eça. Claro, destaco sobretudo a crítica de costumes que acho que está extraordinariamente impressionante e que vale muito a pena. Além disso, a narrativa é muito cativante. Está sempre em crescendo e acaba por criar aquele sentimento em que não conseguimos parar de ler. Se ainda não leram, recomendo muito e gostava imenso de saber a vossa opinião sobre o autor e sobre esta obra! Já tiveram oportunidade de ler?