“O Processo”, Franz Kafka
“A lógica é de facto inabalável, mas não resiste a um homem que quer viver. Onde estava o juiz que ele nunca vira? Onde estava o alto tribunal a que nunca chegara?”
Começo por vos dizer que este post foi um dos que demorei mais a escrever e que este livro é um sobre o qual me custa um bocadinho falar. Há uns anos li A Metamorfose e fiquei a admirar muito Kafka. Investiguei sobre o autor, li contos e ensaios, até fui a colóquio sobre o tema. É estranho pensar que, apesar disso, ainda não tinha lido O Processo, que é só um marco na literatura e na filosofia e, provavelmente, a obra mais completa e importante deste autor. Todavia, para mim, não é estranho de todo. E vou tentar explicar porquê.
Resumir a obra é o trabalho mais fácil. O Processo conta a história de Josef K. que certo dia é acordado na sua casa por oficiais que lhe informam que foi movido um processo. Porquê? Ele não sabe, nós não sabemos, ninguém sabe e ninguém vai saber. A partir daí, começam a ser narrados acontecimentos nos quais eu desisti de tentar encontrar uma lógica, aliás, conhecendo o estilo, não sei porque sequer tentei.
Se seguem o blog sabem que eu gosto bastante de obras de cariz filosófico. Gosto mesmo muito. Porém, cada vez que tenho de falar sobre uma, ou discutir algum aspeto dela, tento ser humilde, porque, apesar de filosofia e literatura andarem sempre de mãos dadas, eu não gosto muito de fingir ser uma especialista em ambas quando a minha área de estudos se foca mais numa do que noutra. Além disso, a filosofia requer sempre outro tipo de abordagem e outro tipo de postura e eu tento sempre fazer este alerta e clarificar que não sou dessa área e que, como tal, a minha opinião pode não ser a mais acertada ou a mais válida, para além de resultar diretamente de uma abordagem literária.
Posto isto, considero O Processo no âmbito da corrente filosófica do existencialismo. E agora, podem questionar, não é Camus, não é Sartre. Pois não, mas e depois? Existe em O Processo a problemática da contingência humana, do absurdo do mundo, da opressão política e social, etc, etc, etc. Às vezes, fazia-me lembrar Nietzsche. Desde que iniciei esta leitura que 'existencialismo’ foi o meu primeiro pensamento, e isso acontece porque desde início que a obra não tem sentido, não tem lógica, sendo justamente esse, na minha opinião, o seu objetivo. Estamos aqui perante o Absurdo. Não há sentido nem lógica porque não é suposto haver. E o protagonista tenta racionalizar a sua situação como nós leitores tentamos racionalizar toda a obra, mas francamente, isso parece-me inútil. O propósito parece-me ter sido eliminar essa possibilidade e demonstrar uma falha na nossa condição. Se nos pusermos a refletir sobre o assunto, o Homem tenta sempre procurar o sentido de tudo, tenta sempre racionalizar cada coisa que lhe acontece, atribuir as causas de tudo a alguma coisa, ao ponto de cair por vezes no inverosímil ou no fantástico. E o que o leitor, na sua humanidade, tenta fazer é justamente isso, mas em pequena escala. O que o autor prova, na minha modesta opinião, é que isso é inútil. Numa abordagem do ponto de vista existencial, penso que se pode afirmar que, do mesmo modo que o Homem tenta procurar um sentido que a vida não tem nem tem de ter, Josef K. tenta procurar o sentido num processo completamente ilógico e sem sentido, e o leitor de Kafka tenta procurar o sentido em O Processo e talvez não devesse, porque temos de desconfiar acerca de até que ponto pode uma obra que narra um acontecimento sem sentido, ter algum sentido. Por isso, desisto.
A certo ponto, desisti de tentar interpretar ou analisar e comecei apenas a ler e o que descobri foi um livro que, em termos técnicos, está muito bem conseguido. E pronto. E agora perguntam: e a moral? E a crítica? E o propósito? E eu respondo: Existencialismo. Não há.
Não vou mentir, quando acabei de ler o livro, fiquei incomodada devido, muito possivelmente, à minha muito humana arrogância e ao meu hábito de descodificar obras “na hora”. Por isso, fui, admito, fazer uma pesquisa e tentar encontrar interpretações possíveis. Sinceramente, fiquei toda feliz quando percebi que nenhuma era particularmente convincente. Sim, já percebemos que a obra é uma critica ao Homem moderno; Sim, entendemos o alerta para as singularidades do sistema judicial que olha por nós (cof. cof. burocracia, corrupção); E sim, todos vemos a vulnerabilidade da inocência e da presunção da inocência e, alguns de nós, até sabem e aceitam o facto de serem dominados por uma sociedade. Mas isto são só conclusões, entendem? De tudo o que li, a única coisa que me disse algo foi a declaração de Erich Heller - a única forma de nos pouparmos ao trabalho de interpretar esta obra é não a ler. Contraditório? Sim, mas o que fazer?
Se não gostam de spoilers, não leiam este parágrafo, mas eu tenho mesmo de falar acerca do final do livro. Que coisa extraordinária, que grande expoente narrativo. Ali estava Josef, sabia que ia morrer, podia ele acabar com tudo, e mesmo assim, decide morrer, passo a citar, “como um cão", às mãos do sistema que o condenou por algo que ele nem sabe o quê (por ser humano e, consequentemente, condenável?). É semelhante à fábula que Kafka escreveu sobre o rato encurralado entre a ratoeira e o gato. Conseguem adivinhar o que ele escolhe. Até porque, o Homem e os ratos não são assim tão diferentes quanto isso.
Antes de acabar, gostava mesmo muito de saber se alguém que esteja a ler este post leu a obra. Gostava tanto de ouvir outras opiniões. Como a interpretam? Gostaram muito ou pouco? Já tinha lido Kafka?
Por fim, está claro que não posso recomendar a toda a gente que vá já a correr ler O Processo. Por tudo o que acabei de mencionar. E porque, para explicar por fim o que prometi na introdução, ler Kafka é uma das experiências mais claustrofóbicas em que alguém se pode meter. Por isso vos digo que não é daqui a pouco tempo que vou repetir a dose. Não obstante, não concluo sem vos dizer que, apesar de tudo, e embora ainda prefira A Metamorfose, gostei muito de ler O Processo.
Idioma de Leitura: Português
4/5