“Os Dois Parentes Nobres”, William Shakespeare
Este mundo é uma cidade cheia de ruas errantes e a morte é o mercado onde todos se encontram.
A peça Os Dois Parentes Nobres é hoje maioritariamente vendida enquanto obra de William Shakespeare, mas, na verdade, é atribuída também ao dramaturgo John Flecher, tendo sido primeiramente publicada em 1634. Acredita-se que terá sido a última peça na qual Shakespeare trabalhou antes da sua morte.
Os Dois Parentes Nobres não é uma originalidade dos seus autores. A peça é baseada num dos contos presentes em Contos da Cantuária de Geoffrey Chaucer. A ação localiza-se em Atenas durante o reinado de Teseus e Hipólita. Na sequência de uma guerra para vingar a morte de alguns súbditos, Teseus derrota os Tebanos e aprisiona os primos Arcite e Palamon. Prisioneiros, estes dois parentes resignam-se ao seu destino e abdicam de qualquer esperança. Isto até ao dia em que avistam da sua janela a princesa Emilia, irmã de Hipólita, e se apaixonam por ela. A partir daí a narrativa descreve o modo como os dois primos se defrontam e competem pelo amor e mão de Emilia.
Gostava de destacar também uma outra linha de narrativa. Acontece que, enquanto estavam presos, a filha do carcereiro da prisão deles encarregue apaixona-se por Palamon e ajuda-o a fugir. Ela permanece apaixonada por ele, mas Palamon não se apercebe nem lhe dá muita atenção, o que faz com que a jovem comece a exibir um comportamento que hoje associaríamos a depressão, mas que, à época se considerava uma forma de insanidade e melancolia, estava doente de amor. Esta linha narrativa foi especialmente interessante a meu ver por três razões: primeiro, é uma divergência face ao conto de Chaucer onde Palamon escapa porque consegue enganar o carcereiro, dopando-o; em segundo lugar, porque nos mostra como o amor era encarado como algo que poderia influenciar negativamente a saúde mental de alguém; e, por último, porque, não obstante esses fatores, esta parte da história é responsável por muitos dos momentos cómicos da peça, o que não deixa de ser bastante significativo e indicativo do modo como a época encarava este tipo de situação.
Um dos aspetos mais idiossincráticos desta peça, em minha opinião, é o modo como observa e escreve sobre os dois períodos históricos imediatamente anteriores. Por um lado, baseando-se num conto medieval, discernimos aspetos dessa época sobretudo no que concerne a tradição do amor cortês; além disso, como já Chaucer localizava a ação na época clássica, esta peça torna-se, aí, uma adaptação de uma adaptação.
Esta peça é baseada no conto “The Knight’s Tale” de Chaucer. Ora esse é um dos meus contos preferidos dos Contos da Cantuária e, a verdade é que, quando me propus a ler Os Dois Parentes Nobres não fazia ideia de que a peça se baseava nesse conto. Quando li essa indicação no prólogo, confesso que fiquei desmotivada. Mas o facto é que esta peça acabou por me cativar. E penso que, se por um lado tinha ficado reticente em ler outra vez uma história da qual tanto gostava, por outro, penso que foi precisamente esse reencontro que me fez apreciar mais a leitura. A história foi entretanto popularizada por outras vias e adaptações, por isso é bem provável que já se tenham deparado com ela algures. De qualquer, modo, esta adaptação é, em minha opinião, algo que merece ser lido. Já tiveram oportunidade de o fazer?