“Perséfone & Midas”, Mary Shelley
Faremos com que o Paraíso ressoe com os nossos hinos de agradecimento.
Esta semana venho falar-vos de um livro da autoria de Mary Shelley que contém duas adaptações de dois mitos da antiguidade clássica. Porque é que me lembrei esta semana de ler esta obra? Não faço ideia, simplesmente lembrei-me, não tive uma razão específica além de gostar muito da autora. Há pouco tempo, aliás, escrevi-vos sobre outra obra dela da qual gostei bastante, Mathilda.
Perséfone & Midas (1922), como Mathilda, também é uma peça de teatro. Aliás, divide-se em duas peças de teatro. A primeira é uma adaptação do mito de Perséfone, a segunda adapta o mito de Midas. Muito sinteticamente, para o caso de alguém não se recordar, o mito de Perséfone narra a história da jovem Perséfone que é raptada e levada para o reino dos mortos e, depois de resgatada pela mãe, passa a viver parte do ano no mundo dos vivos com a mãe e a outra metade do ano no mundo dos mortos. Já o mito de Midas conta a história do rei Midas que Apolo deixou com orelhas de burro e que pediu a Baco como desejo que tudo em que ele tocasse se transformasse em ouro.
Para alguém que conheça os mitos não se depara com nada de novo ao ler as peças de Mary Shelley. Para quem não conhece esta é uma boa forma de conhecer. O que mais gostei na obra é a forma como a autora conta as histórias. É evidente a influência da estética romântica que se fez sentir no século XIX e na qual Mary Shelley foi uma figura importante. Nesse âmbito, as peças são incrivelmente poéticas, com várias referências à natureza, recurso ao sentimental e inclusão de poemas (os poemas incluídos nas peças foram contributos do poeta Percey Shelley, marido da autora).
Como escrevi acima, a peça Perséfone baseia-se no conto do rapto de Perséfone como contado por Ovídio em Metamorfoses que, por sua vez, se baseia no mito grego de Deméter e Perséfone. O que é novo nesta adaptação de Mary Shelley é o modo como a autora conta a história do ponto de vista das personagens femininas, dando particular destaque a Ceres, a mãe de Perséfone, ou às ninfas. Devido a este aspeto (e não só), a peça é muitas vezes alvo de uma leitura feminista.
Já Midas, que também se baseia na versão de Ovídio, também pode ser anacronicamente lida à luz do capitalismo ou como referência ao imperialismo e à industrialização. O que também é notado é a ausência feminina na peça. Aliás, talvez isso seja parte também da crítica da peça, já que, como Perséfone, Midas também tem sido alvo de estudos de género. Recordo uma passagem da peça em que se descobre o segredo do rei Midas e ele automaticamente se convence de que foi uma mulher a responsável pela divulgação da informação ao que um cortesão replica “não há nenhuma mulher aqui”.
As duas peças são por isso muitas vezes vistas em contraste. Perséfone dá destaque ao lado feminino; há um clima de desalento face à interrupção da felicidade por um homem sim, mas antes do rapto de Perséfone ocorrer, o cenário é quase idílico, as personagens estão felizes, em comunidade, são solidárias umas com as outras. Em Midas, o destaque são os homens e aspetos negativos como a avidez, a vontade de poder, a competição, etc. Se em Perséfone, há um evitar da vida na corte, em Midas, esta é idealizada e muito valorizada. Outra coisa interessante que notei foi que as referências inúmeras a flores e outra natureza em Perséfone dão lugar ao destaque do ouro em Midas. Estes contrastes levam-me a dizer que realmente faz todo o sentido que as peças sejam publicadas em conjunto e lidas em sequência (embora não faça diferença ao entendimento se assim não for).
Por fim, sublinharia ainda em relação à primeira peça a busca por Perséfone da sua mãe e as poéticas descrições. Em relação à segunda peça, gostei sobretudo do modo como a componente moral é abordada e da forma como os infortúnios do rei Midas são descritos.
No geral, o que mais gostei nesta leitura foi do modo como as narrativas foram abordadas. O romantismo, como sabemos, dependeu muito das eras anteriores, idealizando-as e reescrevendo as suas narrativas. E esta é precisamente uma leitura romântica de narrativas de uma época passada. Além disso, conta com o tal elemento “género”, agora tão em voga. Haverá leitura mais pertinente? Para mim, este livro, estas leituras de Mary Shelley destes mitos, não valem pelos mitos em si - porque com esses nós estamos familiarizados -, mas pela forma como eles são abordados, por aquilo que estas versões nos dizem sobre o romantismo e sobre a estética romântica e pelo que nos dizem do modo como já então se encaravam e discutiam as esferas masculina e feminina. Quais são as vossas opiniões? Já leram alguma destas peças?