“Terra do Pecado” José Saramago
A felicidade é tão absorvente, habituamo-nos tanto a ela que, quando nos foge, quando no-la roubam, sentimo-nos incompletos como se uma parte essencial do nosso corpo tivesse desaparecido, deixando uma chaga intensa e dolorosa, que não fecha e destila sempre o pus da nossa desventura.
Terra do Pecado foi o primeiro livro publicado por José Saramago, em 1947, tinha então o autor 25 anos. Não era suposto chamar-se Terra do Pecado, mas sim A Viúva, título que foi rejeitado pelo editor. Certa vez, Saramago disse que não havia gostado desta alteração e que, provavelmente em sua consequência, havia deixado de gostar do próprio livro.
Terra do Pecado segue Maria Leonor que fica viúva no início da narrativa. A história trata do seu processo de luto, da sua adaptação a uma vida nova a gerir a casa e a vida e educação dos dois filhos, e as suas relações sociais. O principal enredo foca, contudo, a relação que Maria Leonor estabelece — ou começa a estabelecer — com dois homens, o cunhado e um médico próximo da família — Viegas. Daqui decorre uma complicada relação com a sua empregada de maior confiança — Benedita —, que a condena pelo que supõe a fraqueza e desrespeito de Maria Leonor à memória do marido. Mas, sobretudo, uma narrativa em torno do sentimento de culpa da própria Maria Leonor.
De facto, o mais interessante desta obra, em minha opinião, é realmente a abordagem desta última questão. O modo como a protagonista se debate com um sentimento de culpa face, não somente às suas ações, mas igualmente em relação aos seus desejos e pensamentos. E, além disso, a forma como a questão é tratada pelas outras personagens. Se, por um lado, Benedita condena as ações de Maria Leonor e tem uma postura bastante direta sobre isso, por outro lado, outras personagens, embora procurem defender e entender as ações de Maria Leonor, não deixam de lhes reconhecer, de um certo modo, alguma perniciosidade.
Este modo de encarar a questão não parece tão atual aos nossos olhos. Todavia, convém não esquecer alguns aspetos: a época em que a obra foi escrita e o contexto da narrativa - uma terra pequena e uma população e família católica.
Por último, gostava também de destacar a intrigante relação entre Maria Leonor e Benedita que, a maioria das vezes me pareceu inquietante e despropositada. Até quase ao final da leitura, questionei-me sobre o porquê desta criada ter um tal sentimento — quase de posse — em relação à sua patroa, o porquê de se intrometer tanto na vida dela e de se preocupar tanto com a memória do seu falecido patrão. Além disso, é extraordinariamente desconcertante a genuína preocupação que Benedita tem com Maria Leonor e que é concomitante com um comportamento quase ofensivo e denegridor que exibe em relação a ela. Os últimos capítulos são particularmente ricos nesse âmbito.
Como disse no início, Saramago disse por diversas vezes que não considerava esta obra do mesmo modo que considerava outras. Na verdade, Terra do Pecado é bastante diferente de qualquer outra obra que tenha lido dele, mas isso sobretudo devido à forma e ao estilo. Aqui ainda não está presente o estilo que viria a caracterizar a sua obra. Todavia, em minha opinião, em termos de conteúdo, já é evidente a abordagem que definiria a sua obra e mesmo alguns dos temas. E não concluo sem referir que Terra do Pecado me cativou e impressionou tanto ou mais que outras obras mais tardias do autor.