“Ulisses”, James Joyce
“A suprema questão acerca de uma obra de arte é quão profunda é a vida de onde ela brota”
Ninguém faz ideia de há quanto tempo eu estava literalmente “a morrer” para ler Ulisses de James Joyce! Não o fiz mais cedo porque, entendi pelo que li acerca da obra e pelo que ouvi das pessoas mais entendidas e competentes que eu, que não a iria entender na sua totalidade. Era uma leitura difícil e exigente e bla bla bla. Então fui esperando. No início deste ano, meti na cabeça que já estava “qualificada” para ler tal livro, que já o conseguiria entender e apreciar, e que portanto estava na hora.
Ulisses é um bocado difícil de sumariar. Tecnicamente, narra um dia normal da vida de Leopold Bloom em Dublin. Porém, todo ele está assente em referências Homéricas. Cada um dos 18 “capítulos" corresponde e faz referência a um episódio específico de Odisseia de Homero. Além dessas referências, existem outras mil que são impossíveis de “apanhar" logo à primeira. Referências a filosofia, teologia e religião, economia e matemática, ciência e biologia, medicina, literatura, música e restante arte, e até astrologia, entre outras 500, são literalmente infindáveis e estão em cada página, sem nenhum exagero. Além disso rementem não só à Época Moderna, mas também à Antiguidade Clássica, Época Medieval e Renascimento. É uma loucura e claramente a obra de um génio.
Sobre Ulisses, James Joyce com a habitual bonomia e arrogância que lhe foi atribuída, disse “coloquei na obra tantos enigmas e mistérios que vou manter os críticos ocupados durante séculos a questionarem sobre o que eu queria dizer, e essa é a única maneira de garantir a alguém a imortalidade". Bem, o que dizer? Pelo menos, foi bem-sucedido. Tenho sérias dúvidas que exista, tenha existido ou existirá alguém que descodifique a obra na totalidade. Por vezes, questiono-me se a obra tem de facto algo para descodificar ou se é puramente "algo". Parece-me que, se alguma vez existiu alguém capaz de manter o outro a pensar sobre algo que não requer pensamento algum, esse alguém foi Joyce. Não escreveu ele que a única coisa que exigia aos leitores era que dedicassem as suas vidas à leituras das suas obras?
Acredito que, ainda que dedicasse a minha vida a tentar entender Ulisses, o seu herói Bloom, ou o seu criador Joyce, não sairia do mesmo sítio. Contudo, estou incrivelmente feliz de ter esperado até agora porque, pelo menos sei que apanhei imensas referências e que desmontei pequenos pedacinhos deste grande puzzle e isso faz-me sentir, enquanto estudante e entusiasta de literatura, muito bem comigo própria.
Além disso, há algo absolutamente inegável. Esta obra abre espaço para imensa reflexão. Dei por mim a pensar em coisas estranhíssimas que não me haviam ocorrido antes e que, não vale de todo a pena mencionar aqui. E é tudo dito e expresso de uma forma tão crua, tão "preto no branco", que causa não "choque", mas "deslumbre", pelo menos em mim. E acreditem que eu me choco com bastante facilidade e com coisas menos explícitas do que as que li em Ulisses. O que acontece é que a "crueza" aqui é bela, talvez meio poética, num sentido distorcido que não sei bem explicar e que, como tal, nem vou tentar.
A narrativa “stream of consciousness” é uma coisa extraordinária aqui. Lembro-me de ter ficado sempre encantada com este modo em Virgínia Woolf mas, com todo o respeito, em Joyce é ainda melhor. Acho que é por ser tão cruo, faz parecer mais honesto, os pensamentos mais semelhantes aos verdadeiros pensamentos que o indivíduo comum tem realmente.
E depois há ainda outra coisa. É que Bloom tem nele tanto do mítico Ulisses de Homero como eu. Isto é, zero. Bloom é uma subversão incrível do herói Homérico. É como um Ulisses moderno, 100% humano, mundano e, por vezes, até medíocre. Como todos nós.
Tenho de destacar aqui alguns episódios que sinceramente me tocaram muito. O primeiro episódio, correspondente à Telemaquia Homérica, o episódio Homérico de Circe, que Joyce retratou com a Senhora de um Bordel, o episódio Homérico de Nausíca que em Joyce é francamente uma coisa extraordinária, sem nenhum exagero e, claro, o famoso solilóquio de Molly Bloom, o último episódio. Esta Molly que corresponde à Penelope de Ulisses, de homérica também não tem nada. Penelope esperou fielmente durante anos pelo regresso de Ulisses, Molly é adúltera.
Como toda a honestidade, o solilóquio de Molly Bloom, a “flor da montanha” para quem “o sol brilha”, é uma das coisas mais belas, tristes e geniais que já li, e a isso não tenho absolutamente nada a acrescentar. Só por ele, vale a pena ler as 730 páginas de Ulisses.
Uma nota também para o penúltimo episódio que é mega inovador em todos os aspetos e inundado de referências (como toda a obra, de resto), porém com alguns erros reconhecidos que, conhecendo o carisma do autor, só podem ser intencionais. Não escreveu ele também que “Os génios não cometem erros. Os seus erros são sempre voluntários e dão origem a alguma descoberta.”? O que dizer disto? Joyce gostava de manter a crítica entretida e ocupada consigo. E com isso se tornou imortal.
Por mim, recomendo muito, muito, muito mesmo a leitura de Ulisses de James Joyce. Porém, com a consciência de que não é uma leitura fácil e é percetível o porquê de muitas pessoas não a terminarem. É também importante haver um conhecimento prévio da obra Homérica, mas também de “Literatura” e não só, percebem o que quero dizer? Vou ser humilde e sincera e dizer que não entendi tudo, mas tudo que entendi, tocou-me profundamente e sei que, daqui a uns anos, vou voltar a esta obra e vou entender mais um bocado e vou gostar ainda mais. O meu único arrependimento é ter lido a tradução e não o original. Mas vou proceder à compra do original em menos de nada porque sei que numa obra como esta, não pode ser de outra maneira. Pelo que, se quiserem ler esta obra (espero mesmo que sim!), e se tiverem essa possibilidade, façam a leitura em inglês. E boa sorte!
Idioma de Leitura: Português
5/5